Rui Salvador – o cavaleiro dos ferros impossíveis despede-se da Arena d’Almeirim

Rui Salvador nasceu em Lisboa, no dia 1 de janeiro de 1965. Hoje, com 59 anos, tem a licenciatura em Arquitetura, mas enveredou pela carreira de Cavaleiro Tauromáquico. Instalou-se nos arredores de Tomar onde existe uma Praça de Toiros com o nome de seu pai José Salvador. Estreou-se em público na Praça de Toiros da Barquinha a 12 de março de 1976, toureando no Campo Pequeno, como amador, a 22 de fevereiro de 1977 num festejo de carnaval. Tomou a Alternativa de Cavaleiro Tauromáquico a 9 de agosto de 1984, no Campo Pequeno, tendo como Padrinho o saudoso José Mestre Batista e como Testemunha João Moura. Por ocasião dos seus 30 anos de Alternativa lidou, em solitário, seis toiros da Ganadaria Murteira grave, a 8 de maio de 2014, na Praça de Toiros de Tomar, Praça com o nome de seu pai José Salvador.  Comemorando os 40 anos de Alternativa, muito recentemente, foi considerado pelos aficionados em geral como o Toureiro a Cavalo “Dos Ferros Impossíveis”. 

Este ano voltou a tourear comemorando os 40 anos de Alternativa. Faz a sua retirada. Por coincidência acha que foi o momento certo?

Não é por coincidência. É a opção correta que acho que tomei. São 40 anos de alternativa, mais 10 de dedicação absoluta a uma atividade que eu tenho uma paixão imensa e que tenho orgulho em praticá-la, em senti-la, em vivê-la, mas, como tudo na vida, há momentos em que temos de tomar decisões e que são duras e não são nada fáceis de decidir. Mas, a verdade é que há que as tomar e eu achei que seria realmente a altura adequada, são 40 anos de profissional, são 40 anos de bons e maus momentos, mas, acima de tudo, no global, o saldo é bastante positivo e que me dá um alento enorme poder sair daqui com o carinho que tenho recebido, ultimamente, destas pessoas, que têm assistido às corridas, que têm esgotado as praças e que, de alguma maneira, tenho sentido um carinho extraordinário, recompensando-me, assim, de toda a dedicação que eu tenho tido a esta atividade. 

O seu regresso à Arena d’Almeirim, fazendo a sua despedida, da mesma, na corrida de 20 de setembro, o que representa para si? 

Eu este ano decidi, foi cautelosamente estudada a temporada desta época, e decidi tourear em sítios que tivessem história, algo que fosse declaradamente perentório na atividade, ao longo dos anos que eu tenho de carreira profissional e Almeirim é um desses casos. Eu lembro das corridas da CAP, das corridas de setembro das Vindimas, sempre esgotadas, com um calor humano extraordinário e de uma importância enorme também no calendário taurino nacional, e que enchia de orgulho quem participasse nelas. Foi o que aconteceu durante toda a vida, e espero, que uma vez mais, seja essa a situação, porque está montada uma corrida com toda a dignidade e qualidade necessária para que o espetáculo seja realmente um êxito. 

É um toureiro que nunca recusou tourear toiros de alguma ganadaria. O que acha dos toiros da Ganadaria Manuel Veiga? 

É uma garantia do êxito, é exatamente o que eu acabei de dizer. São, geralmente, toiros que são colaborantes e que acabam por ajudar a que o êxito surja, e essa, realmente, é uma das outras qualidades, dos outros saldos positivos que esta corrida tem, dos pontos positivos que esta corrida tem, é exatamente a ganadaria.

A partir da temporada de 2025, o que irá sentir, no quotidiano, que mais falta lhe faz?

Vão ser com certeza as corridas de toiros. Sabe que trabalhar assiduamente um animal com o objetivo de ele amanhã ser alguém, ser alguma coisa no meio taurino, é uma paixão imensa. Não é só simplesmente o que se vive dentro de uma Praça de Touros, é tudo aquilo que se vivencia até chegar à Praça de Touros. São momentos únicos, são momentos extraordinários de recompensa, de quando se consegue conquistar passo a passo uma imensidão de características que os cavalos têm, por outro lado, muitas desilusões, porque há muitos cavalos que dão indícios de que venham a ser extraordinários, e que depois voltam para trás, é muito usual acontecer isso, porque senão isto era fácil. Enganamo-nos muitas vezes, mas sempre é esta ilusão que está no ar e que faz com que exista toda esta magia do cavalo, e depois, claramente, o toiro. O toiro é uma coisa que vai fazer falta. É um animal único, também, da qual aprendemos a apaixonar-nos e a admirar toda uma panóplia de características que o toiro tem e que são realmente dignos de um rei. Exatamente por isso é que é o rei das nossas corridas.

Todos os toureiros interiorizaram os seus ídolos. Quais são os seus e fale-nos deles.

Eu fui, claramente, marcado por uma geração em que o José Mestre Batista era uma peça fulcral, inovadora, revolucionária, de alguma maneira, e eu, como um miúdo, como um adolescente que começava a nascer, foi sempre a pessoa que mais me marcou. Embora houvesse toureiros extraordinários, que eu sempre tive uma admiração imensa dessa geração, o Luís Miguel da Veiga e depois o Zoio, e depois todos os outros que eu tive a sorte de acompanhar, ainda. Eu acho que quem consegue beber e aprender as coisas que todos nós fazemos no dia-a-dia, de maneira diferente, porque tudo isto, embora haja técnica e as regras que são muito semelhantes, a verdade é que se consegue personalizar o que se pratica dentro de uma praça de toiros, e quando se consegue deixar essa marca, é uma imensidão de glória que se consegue atingir, e o Batista é um marco inolvidável da nossa Tauromaquia e outra pessoa que marcou, claramente, o João Moura. O João Moura é uma lenda viva. É claramente, alguém que conseguiu ultrapassar todos os limites que havia na Tauromaquia, adaptando-a, mudando-a e fazendo-a prosseguir numa nova trajetória, explorando muito mais tudo aquilo que era preciso e que era possível dar ao toiro, naturalmente, também com a própria evolução do toiro. Mas é o toureiro rei que existe em Portugal e que temos a sorte de ainda o poder ver hoje em dia. E foram, claramente, as duas pessoas que mais me marcaram.

É difícil, depois de 40 anos a tourear, pôr um ponto final na carreira? 

É muito difícil, eu penso que toda a gente consegue perceber que é uma coisa que dói, no dia-a-dia, perceber que nunca mais vou voltar a sentir toda esta adrenalina, toda esta emoção, tudo aquilo que pratiquei durante todos estes anos é duro, é difícil. Mas vou, com certeza, continuar ligado à tauromaquia, de alguma maneira, tentando ajudar, divulgando-a e consolidando-a, de alguma maneira, porque há muitos outros fatores, hoje em dia, que fazem com que se deturpe o que realmente aqui se passa. Acho que é fulcral que exista alguma clarificação e as pessoas que se retiram têm essa obrigação. Depois têm a vivência imensa que a podem transmitir e ajudar, de alguma maneira, que isso seja bem esclarecido.

É considerado o toureiro dos ferros impossíveis. Quais foram as fases mais marcantes da sua carreira? 

Os ferros impossíveis não eram, com certeza, se não, não os teria colocado, mas a verdade é que a nossa carreira, a carreira que nós conseguimos construir ao longo de uma vida, é complicada no sentido de estar absolutamente interligada aos cavalos que vamos conseguindo encontrar e pô-los a tourear. Eu tive a felicidade de ter vários cavalos bons e ter muitos cavalos a tourear. Eu consegui tourear em mais de 200 cavalos. É uma coisa que me orgulho imenso, sempre tive uma capacidade extraordinária de me adaptar às várias características que esses cavalos me davam. Isto porque também tive a sorte de ter três ou quatro extraordinários professores que me ajudaram imenso, nos quais tenho de destacar aqui o Gustavo Zenkl, o Mestre Batista, o José Cortes. Tudo isso fez com que eu fosse, como eu referi há pouco, bebendo um pouco de cada um para chegar a uma conclusão e definir a minha trajetória. E os momentos melhores são, claramente, as fases em que tive melhores cavalos, como é natural. Depois, os outros momentos em que não tinha tão bons cavalos, tive de viver à conta da minha maturidade e aquela clara adaptação que eu tenho aos cavalos que foram passando ao longo da vida por mim.

Que diferença nota ao longo destes 40 anos? Acha que o toureio a cavalo sofreu muitas modificações?

Sofreu, desde o meu início até hoje em dia há uma alteração grande, há uma evolução, uma diferença enorme naquilo que era, o toiro tem outra atitude completamente diferente, tem um volume completamente diferente, portanto, naturalmente, também não tem a agilidade que tinha. Eu lembro que, em miúdo, havia duas preocupações, não havia os telemóveis, não havia essas coisas, assim que chegávamos a casa a minha mãe queria saber primeiro se eu estava bem, se tinha caído, e o que é que tinha de arranjar na casaca para o dia seguinte ou para os dias que vinham, porque os toiros vinham sempre cá acima, por exemplo. Era raro o dia que eu não chegasse a casa com uma casaca rasgada do lado direito, só por isso percebe onde os toiros vinham, não é? E hoje em dia é uma coisa que acontece raramente, portanto, o toiro tem uma tendência imensa em humilhar, em andar com menos velocidade, tem menos agilidade, eu não estou a criticar, não estou a dizer que é pior ou melhor, estou a dizer que é uma constatação clara, o que faz com que também o cavalo se adaptou e nós, como toureiros, hoje em dia, não somos melhores nem piores do que foram em outrora os nossos colegas, acompanhámos foi a evolução que esse toiro tem, e daí poderem-se fazer hoje coisas muito mais bonitas, muito mais graciosas, muito mais devagar, tudo isto faz com que haja uma evolução natural no toureio que não tenha a ver com o início da minha carreira, como é lógico.

De entre todos os seus cavalos, num determinado momento da sua carreira, qual era a sua Quadra ideal? 

 O melhor cavalo que eu tive até hoje chamava-se Napoleão. Era um cavalo que era extraordinário, muito complicado, tive a infelicidade ou felicidade de crescer com ele ao mesmo tempo, com pouca maturidade, estava na fase inicial da minha carreira, quando tudo se vive com uma intensidade imensa, com muita pressa, e a verdade é que, se eu tivesse a sorte de ter, por exemplo, este cavalo hoje, muita dificuldade teria de me ir embora, porque era um cavalo que fazia tudo, recebia, atacava, ele adiava, fazia tudo aquilo que hoje em dia nós vemos fazer. Eu, por exemplo, com este cavalo fiz muitas vezes, espontaneamente, coisas que realmente, só mesmo vendo os vídeos antigos que eu tenho, às vezes até fico mesmo realmente impressionado como é que era possível fazerem em determinado tempo determinadas coisas, porque a adolescência também provoca isso e faz com que o risco se queira viver com maior intensidade, há esse descaramento que naturalmente a maturidade acaba por ir acatando, dando um lugar a outras sensações e que fazem com que ainda aqui esteja hoje em dia. Eu sou claramente um velho, eu lembro, vou contar uma história engraçada, estava uma vez em Vila Franca, toureava eu, o António Teles e o Mestre Batista, correu-nos muito mal a mim e ao António no primeiro toiro e ao Batista correu muito bem, e já estava o Batista no segundo toiro a dar-nos mais um baile outra vez. E nós, irritados dissemos: “Mas o que é que é este velho ainda aqui anda a fazer?” um bocadinho aquela expressão entre miúdos. E a verdade é que o Batista, nessa altura, tinha muito menos idade do que temos hoje em dia, muito menos anos de alternativa e já nós os miúdos lhe chamávamos de velho, portanto, repare o que é que todas essas gerações a seguir vão pensar de mim, do António, de todos estes, todo o parque jurássico ainda aqui anda?! Mas é possível exatamente aqui andar porque acabamos por assimilar uma data de coisas que a maturidade acaba depois por expor de uma maneira bonita de se ver. Até que há uma altura que eu acho que há um limite mesmo.

A Corrida das Vindimas na Arena d’Almeirim está a gerar grande ambiente. O que acha do Cartel da Corrida? 

Acho extraordinário, está muito bem montado. Tem uma panóplia de Toureiros diferentes, com características diferentes, que eu acho que vão fazer com que a Almeirim uma vez mais esgote. São os meus votos, venham-nos ver, porque tenho a certeza que todos estamos num momento em que queremos dar o melhor. Eu porque me quero despedir como deve ser, e todos os outros toureiros continuam a querer cimentar o seu lugar no Escalafon. E, portanto, é claramente o momento da temporada em que as coisas ainda se estão a definir e vai ser uma corrida extraordinária.

Daqui a uns anos, quando se falar do Cavaleiro Rui Salvador, como gostaria de ser recordado? 

Como alguém que vivia apaixonadamente o que fazia. O Toureio é uma coisa que me preenche, que junta dois animais que eu adoro, o cavalo, que é um ser incomparável e é realmente uma coisa extraordinária, e depois, o touro, portanto, tudo isto faz com que se perceba que tem que haver alguma coisa muito grande por trás para haver uma quantidade imensa de anos de dedicação, é porque a Tauromaquia é grande, tudo aquilo que sou, devo praticamente à Tauromaquia em si. Também sou arquiteto, também tenho outras atividades paralelas, sempre tive, aliás, sempre consegui conciliá-las, mas é com certeza, foi a Tauromaquia aquela mais intensa, que mais me preencheu, que usou e abusou de mim e ainda bem.

Quer deixar alguma mensagem aos aficionados, para estarem presentes na Corrida das Vindimas, no dia 20 de setembro, na Arena d’Almeirim, na sua despedida?  

A mensagem é, claramente, a que acabei de referir há pouco. Eu acho que estão, claramente, reunidas as condições para que a corrida seja um êxito. Venham a Almeirim, venham ver esta corrida, porque está muito bem montada, é um marco aliciante para qualquer aficionado da Tauromaquia. Tenho a certeza absoluta que a praça vai estar cheia.