Fevereiro de 2024. Sevilha. Quilómetro 40. Corremos agora numa rua de lajes de pedra, a artéria principal da cidade antiga, ao lado da Catedral. Pela primeira vez desde que parti, baixo a guarda e perco o foco na velocidade, nos batimentos cardíacos, na alimentação, hidratação, nas dores, na linha verde na estrada que tentava seguir para evitar ao máximo desvios do percurso oficial. A sensação de alívio foi indescritivel. Olho em volta e penso nas dezenas de corredores que seguem junto a mim, cada um deles decidiu há meses tornar o dia 18 de Fevereiro uma data fulcral nas suas vidas. Fizeram sacrificios, compromissos, mobilizaram a família e amigos, prepararam o corpo e a mente durante meses, tudo na esperança que a Maratona lhes fosse justa naquele dia! Olho para o relógio e faço umas contas rápidas de cabeça. Agora sim, tenho a certeza que vou conseguir. Que VAMOS conseguir! Solto um urro e grito pelo João Mota, que me responde meio estremunhado mesmo atrás de mim! NÃO ESCAPA, MOTA!!
Dezembro de 2023. Almeirim. O despertador toca às 4:40 da manhã. Esqueçam o “quem corre por gosto não cansa”. Se alguém vos disser que acorda por gosto a uma quarta feira às 4 da manhã para correr está a mentir! Não é o gosto que nos tira da cama todas as madrugadas. É a disciplina, o compromisso. A teimosia, se quiserem! Enfim, é só mais um dia. Obrigo-me, a levantar para calar o telemóvel e não acordar o resto da família. Equipo-me fechado na casa de banho, para não fazer barulho, cheio de sono, frio, desconfortável. Abro a porta de casa, noite cerrada, sinto aquele baque horrível do gelo de inverno nas pernas. Respiro fundo, saio à rua e já lá está o Alexandre, como sempre. Uns segundos depois chega o Mota. Nem precisamos de falar grande coisa. No plano está um daqueles treinos horríveis que o Carlos, o nosso treinador, chama semi-longo. Naquele dia são 20km a um ritmo baixo, só para encher chouriço. Temos que estar de volta no máximo às 6:50, para depois cada um ir para a sua vida. É só mais um dia. Acenamos com a cabeça, ligamos o relógio e lá vamos.
Fevereiro de 2024. Sevilha. Quilómetro zero. Sou uma pessoa céptica, muito pouco dado a esoterismos. Mas a energia que emana de 10 mil pessoas antes de ser dada a partida para uma Maratona é palpável. Colados a mim estão o Alexandre e o Mota. Abraçamo-nos uma ultima vez. Um minuto para a partida. Vangelis a tocar bem alto. Fecho os olhos e respiro fundo uma e outra e outra vez. 30 segundos, 20, 10, 3, 2, 1…
Dezembro de 2011. Lisboa. Quilómetro 42.2. Terminei a minha primeira Maratona e foi das coisas mais difíceis que fiz na vida. Foi naquele dia que ela me conquistou. Percebi que tem que ser respeitada, que temos que nos entregar a ela de corpo e alma, se não corremos o risco de ser mastigados e cuspidos. É a prova justa. O que nós lhe dermos ela retribui. Desde aquele dia a corrida tornou-se um pilar na minha vida. Primeiro na estrada, depois na montanha. Corri em quase todas as serras de Portugal e nos pontos mais altos dos Alpes e dos Pirinéus. Passei, em prova, 66 vezes a marca da maratona, incluindo 20 vezes acima de 100km. Mas a Maratona…. a Maratona continuava a ser a Rainha.
Fevereiro de 2024. Sevilha. Quilómetro 42.1. Olho para o relógio outra vez, já está, já está, JÁ ESTÁ!!! Braços no ar! MOTA, CONSEGUIMOS!!! Cruzo a meta, desligo o relógio, 2h57, procuro de imediato o Mota para o abraçar. O Carlos! O Carlos está aqui! Um abraço a 3 que se torna num abraço a 4 com o Castela! Tenho dificuldade em respirar, debruço-me, agarro-me aos joelhos e começo a tossir incontrolavelmente. Cuspo. Que euforia! Gargalhadas entre suor, ranho e baba! Não consigo respirar bem e tenho a cabeça à roda! CONSEGUIMOS, MOTA. CONSEGUIMOS, CARLOS, OBRIGADO! CONSEGUIMOS!!!
Fevereiro de 2024. Sevilha. 14:30. Estamos numa esplanada, a minha família e a do Mota, numa ruela por trás da Catedral. Duas horas de almoço e doem-me os maxilares de tanto rir enquanto recordámos cada metro da nossa corrida. Os miúdos andam todos a brincar ali pela praceta, a Sara conversa com a Ana e o Mota. Sinto um arrepio de frio e decido tirar a cadeira da sombra. Quando me levanto tenho a cabeça à roda das 4 ou 5 cervezas que já tinha bebido. Sento-me de frente para o sol, fecho os olhos e sinto o calor de inverno de Sevilha a abraçar-me. Oiço os miudos e a Sara a rir com a minha Olívia e também eu sorrio. Respiro fundo… Maratona é vida!
Filipe Torres