O cérebro herdado tem um enorme potencial para se desenvolver, mas é muito vulnerável na altura do nascimento, possuindo tanto de promissor como de risco. Desde uma fase muito precoce, os estímulos externos promovem alterações moleculares e celulares específicas no seu interior, que condicionam a aprendizagem e a aquisição das diferentes capacidades. O volume cerebral duplica no final do primeiro ano de idade e, aos sete anos,<z possui o equivalente a 90% do cérebro adulto. A construção da arquitetura cerebral inicia-se antes do nascimento, prolonga-se até à idade adulta, mas 80% dela ocorre entre o nascimento e os três anos de idade. Está dependente da estabilidade emocional, das interações linguísticas e das relações sociais estabelecidas.
A inteligência tem relação direta com a estrutura e o volume final do cérebro, pelo que a expressividade da componente hereditária depende fortemente das experiências vividas, como se aborda em seguida.
Distúrbios dispensáveis de índole política, institucional, familiar ou pessoal (guerras, discórdias familiares, etc.) podem gerar stress pós-traumático e comprometer o desenvolvimento global da criança.
A linguagem é indispensável ao processo da comunicação e constitui a base do raciocínio. O estímulo da linguagem inicia-se durante a gravidez e tem papel preponderante na idade pré-escolar. Instituídas precocemente, atividades interativas como cantar, falar e ler/contar histórias promovem o desenvolvimento da consciência fonológica (a noção dos sons), a aquisição da linguagem expressiva, a memorização e a capacidade de concentração, predispondo o cérebro para aprender a ler, a escrever, a raciocinar e a resolver problemas (1). O contacto precoce com os livros induz o estabelecimento de outras interações, desperta a curiosidade e expõe a criança a um vocabulário mais rico, pelo que acrescenta um valor inestimável à estimulação da linguagem (2).
Somos seres sociais e, por isso, dependentes de relações sociais fortes e positivas. Estas são essenciais ao desenvolvimento cognitivo e emocional da criança. O processo da sociabilidade inicia-se nos primeiros momentos de vida e prossegue ao longo das diferentes etapas do desenvolvimento psicomotor. Depende da manutenção de uma interação recíproca de qualidade entre a criança e os seus cuidadores, exigindo que estes respondam a cada um dos seus sinais e apelos. Quando o bebé ou a criança pequena sorri, palra, gesticula, chora ou questiona é fundamental que o adulto lhe devolva o contacto do olhar, o sorriso, a palavra/resposta ao que foi questionado, o afeto, o abraço, a emoção ou a respetiva brincadeira (“serve and return”). Este método é muito barato e intuitivo. Não requer muita erudição, apenas atenção e disponibilidade física e mental dos cuidadores. Os resultados são profícuos. Durante os primeiros anos de vida, na sequência desta permuta mútua, o cérebro da criança consegue estabelecer mais de um milhão de novas conexões celulares (sinapses) por segundo (3). Brincando livremente e jogando com os seus pares a criança complementa o desenvolvimento linguístico e social: aprende a negociar com os outros, a lidar com a frustração e com as situações inesperadas (4). No contexto social e escolar a criança aprende a exercitar a memória, a flexibilidade mental (capacidade de concentração apesar das solicitações múltiplas) e o autocontrolo (estabelecimento de prioridades e redução da impulsividade).
De uma forma divertida para ambas as partes, a interação recíproca (serve and return) promove o bem-estar social e afetivo da família, enquanto o desenvolvimento do cérebro imaturo se processa: as relações sociais consolidam-se, dispara a velocidade de aquisição da linguagem, brotam as competências sociais e cognitivas e diminuem os problemas psicológicos. O desenvolvimento das competências sociais e linguísticas em idade pré-escolar constitui o alicerce para as aprendizagens posteriores. Estas competências têm mais impacto no futuro sucesso escolar e profissional do que uma aprendizagem académica instituída muito precocemente. Tempo desperdiçado nos primeiros anos de vida pode tornar-se muito difícil de resgatar, com consequências irreversíveis e nefastas a longo prazo. As aprendizagens graduais são indispensáveis à transição da dependência absoluta à nascença para a independência adulta.
O uso indiscriminado dos ecrãs tem vindo a assoberbar a atenção de pais e filhos. Remete para um segundo plano atividades de interação pessoal recíproca com elevado potencial de aprendizagem sociocognitiva. Rouba tempo precioso e irrecuperável a uma estimulação oportuna e adequada. Por outro lado, interrompe sistematicamente as interações entre as crianças e os seus cuidadores (“televisão de fundo”, notificações, telefonema inesperado, etc.), com impacto negativo no desenvolvimento cerebral.
Mais recentemente, as maiores vítimas da pandemia foram as crianças. O encerramento prolongado das escolas entregou-as ao cuidado exclusivo dos pais, que se encontravam a trabalhar por via remota. As crianças foram empurradas para um isolamento social inevitável dentro da própria casa, durante uma fase crucial do seu desenvolvimento. As falhas na interação recíproca tiveram impacto imediato na linguagem, na sociabilidade e na saúde mental, como temos vindo a constatar. As repercussões a longo prazo ainda não são conhecidas.
Cabe às famílias, aos profissionais de saúde e de educação e aos responsáveis políticos coordenar esforços para inverter esta situação, tentando reaver o tempo perdido para este infortunado grupo de crianças. Os grupos sociais mais vulneráveis foram os mais afetados e são os mais difíceis de recuperar. Requerem um investimento particular de toda a sociedade. Disrupções no processo de desenvolvimento individual limitarão a mobilidade social e económica, ameaçando a vitalidade, a produtividade e a sustentabilidade da sociedade.
Mais informação pode ser consultada em:
(1) https://cps.ca/en/documents/position/read-speak-sing-promoting-literacy
(2) https://reachoutandread.org
(3) https://developingchild.harvard.edu/guide/a-guide-to-serve-and-return-how-your-interaction-with-children-can-build-brains
(4) https://publications.aap.org/pediatrics/article/142/3/e20182058/38649/The-Power-of-Play-A-Pediatric-Role-in-Enhancing
Teresa Gil Martins