O Queres ver o teu corpo? Mata o teu porco. O ditado é tão velho como a tradição revivida em “no passado ou naquele tempo”
Em tempos vivia-se da agricultura de subsistência e quase todos tinham animais, galinhas, coelhos e cabras ou ovelhas, porcos, havendo outros que tinham vacas.
Ora, o aproveitamento da “criação” era uma parte do supermercado da altura. Das galinhas os ovos e os frangos, das cabras e ovelhas o leite e os cabritos e borregos e as peles. Das vacas o leite e os vitelos. E, entre outros, do porco o aproveitamento total. Eram criados na pocilga e em janeiro ou fevereiro quando estavam no momento certo a preparação da matança era um evento familiar ou de vizinhos mais próximos.
A matança do porco tinha tradição nos atos próprios da atividade rural, mas também na gastronomia do fim-de-semana.
Logo pela manhã de sábado preparava-se o “cenário”. A banca onde iria ser colocado o animal. A lenha para a fogueira. A carqueja e caruma para queimar o pelo do porco. As cordas e o chambaril para o pendurar a enxugar durante largas horas antes da desmancha, no domingo de manhã.
Quando chegavam os homens que haveriam de ser os protagonistas de metade da manhã já as mulheres preparavam a sua parte. Desde logo o pequeno-almoço farto com café de cafeteira para os familiares e vizinhos. Os alguidares, vinagre e sal para o sangue, os tabuleiros para as tripas assim como os quilos de sal e sacos de laranjas, previamente colhidas, que levavam para a ribeira da parte da tarde. O sal e as laranjas com a água corrente da ribeira lavavam as tripas que depois haveriam de receber as carnes temperadas para as morcelas, chouriços e farinheiras.
Mas voltemos ao início da manhã. Os homens juntavam-se ao pequeno-almoço e quando todos estavam presentes avançavam para aquela parte mais impressionante que é o ato de matar o porco.
Hoje é mais ligeiro. Com as devidas licenças e com a presença do veterinário oficial este atordoa o animal antes do momento fulcral da faca. Diz quem sabe que tem de ser no sítio certo para que o sangue corra para o alguidar onde uma mulher vai mexendo para não coalhar rapidamente. O sangue vai depois a cozer e, ou fica para as morcelas de sangue, ou vai para o sarrabulho ou semineta, pratos de gastronomia típica de algumas zonas do ribatejo.
Depois passava-se a uma outra fase. Chamuscar o porco com a carqueja e caruma e raspar a pele com caco de telha mourisca ou com as facas e sempre com uma mangueira de água a correr ou com um par de baldes. Após estar bem raspado e lavado surgia o intervalo.
Saía uma bandeja com cálices e uma garrafa de água ardente, em geral de figo, e uns figos secos: o chamado mata-bicho.
Após este convívio o trabalho passava a ser para os mais entendidos. Abrir o animal requer formação ou perícia da experiência.
Aqui as mãos e a faca tratavam da primeira parte da desmancha. Tirar as tripas para um tabuleiro. Coração, rins, fígado, bofes para outro.
Ah, a passarinha, essa sai direta para as brasas e há-se ser a primeira prova do porco, grelhada e regada com muito sumo de limão espremido.
Depois dos primeiros trabalhos o animal era atado ao chambaril, uma espécie de cabide, que o içava e deixava pendurado até à manhã do dia seguinte com isto é quase meio-dia. Os homens limpavam o espaço onde trabalharam e na cozinha preparava-se o repasto típico do almoço de sábado: sopa de feijão com massa e muitos cominhos, bacalhau guisado e claro não pode faltar o pão caseiro e o arroz doce bem como as laranjas que são a fruta da época.
Após o almoço de sábado as mulheres juntavam os alguidares com as tripas, os tabuleiros de madeira e os sacos de sal e de laranjas.
Na ribeira escolhiam o local apropriado. Com corrente forte para poderem lavar as tripas. Eram, tal como hoje, viradas e esfregadas com sal e laranja e vão à água. Após algumas voltas, quando entendiam estar no ponto são guardadas no tabuleiro.
As tripas depois de lavadas eram guardadas para encher de carne no dia ou dias seguintes.
O jantar de sábado, curiosamente, nada tinha a ver com carne de porco. Era canja de galinha e galinha guisada.
No domingo, manhã cedinho os convivas voltavam a juntar-se à mesa do pequeno-almoço. Pão caseiro, queijo fresco e curado e enchidos, café e bolos amassados e ainda filhós ou fritos estendidos fazem parte do arranque.
A desmancha era aquela parte com mais ciência ou experiência de muitas desmanchas que consistia em separar todas as partes do porco. Presuntos. Mãos. Lombos. Lombinhos. Entrecosto. Costeletas. Entremeada. Toucinho. Febras. Pés. Orelha. Focinho. Rabo. Chispe.
A gordura pura era colocada de lado e iria servir para fazer a massa das farinheiras. Outros pedaços de carne ou carne com gordura iriam para o tempero tendo em vista o enchimento das tripas para os chouriços.
Nesta manhã os vizinhos chegavam e iam conversando com a toda a manhã enquanto a fogueira estava bem viva para aquecer os corpos enregelados de uma manhã na rua, mas, acima de tudo, com brasas para grelhar as febras e toucinho, sempre com muito sal e limão. Momento de se provar as “pingas” de cada um. Ou seja com os grelhados o vinho de várias adegas fazia parte do antes do almoço.
Depois do trabalho feito as mulheres temperavam as carnes para as farinheiras e chouriços que iriam encher as tripas lavadas na ribeira no dia anterior.
Quanto ao almoço de domingo a sopa de osso do peito ou de ossos e o cozido à portuguesa só com carne se porco e enchidos era o repasto. Nada de vaca ou frango. Batata, nabo, cenoura e couves e a carne de porco.
Era assim….
Crónica, por Augusto Gil