Tem uma Travessa no centro de Almeirim com o seu nome e é uma pessoa estimada por todos. Vitorino Dias de Carvalho guiou o nosso jornal numa visita ao espaço, onde trabalhou quase até aos 70 anos. Vitorino foi homenageado na Gala do Jornal O Almeirinense, a quem foi atribuído o prémio Carreira.
Como é que o seu pai veio para cá?
É por influência de um tio que o meu pai veio para cá. Chego cá com 7 anos, fiz da primeira à quarta classe cá, e cá é que tive os amigos e não foram tão poucos quanto isso. Samora Correia, posso ir lá de vez em quando, passados anos, era a única convivência que tínhamos uns com os outros.
E o ofício como é que aparece na sua vida?
A minha mãe, para eu não andar na “boa vaiela”, que eu gostava muito de brincar como todas as crianças, foi ter com um sapateiro para eu ir aprender.
E onde é que era essa oficina?
Essa oficina era no lar dos Charcos. Fui para aí, não se ganhava nada, naquela altura era assim. Estive ali uma temporada e comecei a ganhar gosto por aquilo. Passado um tempo, eu costumava passar sempre por um colega dele quando vinha no caminho para casa e ele perguntava-me “então o que é que tu já fazes no Rato?”, ele era Francisco Amaro mas tinha a alcunha “Rato”, e eu respondi “já ponteiro, já cozia”, e ele perguntou “então e quanto é que ele te dá?”, “não me dá nada”, “tu fazes isso tudo e ele não te dá nada? Queres vir para cá?”, eu não tive mais resposta, disse que ia e fui logo no outro dia. Agora, um não me dava nada e o outro nada me deu. Andei ali uma temporada, e depois fui a sério para um senhor chamado Rogério Soares, que era um grande artista e era boa pessoa, e fui lá pedir-lhe trabalho. Aí é que comecei a ganhar um ordenadozinho.
E onde era essa oficina?
Essa oficina era lá no centro, era pegado a uma coisa de lavar carros. Tive aí uns poucos de anos e fui crescendo e ganhando gosto pelo ofício. Passada uma temporada, já eu tinha 16 anos, o Rogério pensa em acabar com a oficina, mas ele tinha lá um empregado que se estabelece porque tinha muita clientela. Pronto, fui para aí, fui crescendo.
Há uma história engraçada, havia a fama dos sapateiros mentirem muito e à segunda feira não faziam nada, iam para a bebedeira e jogar cartas, segunda feira era deles. Eu era “cachopo”, e fazia-me confusão e pensava “porque é que eles não trabalham à segunda feira?”. E depois mentiam muito, diziam que tinham os sapatos prontos num dia e era mentira, e isso também me fazia confusão.
Quando é que se estabelece por conta própria?
Isso acontece, tinha eu 23 anos. Fui obrigado a casar muito novo, porque morreram os pais da minha namorada na altura enquanto ainda estávamos no namoro. E como ela ficou sem pais eu pensei em juntar os trapos com ela, isto com 20 anos e com dificuldades, não era só eu era toda a gente naquela altura. Ao fim de nove meses já cá estava uma filha. A minha missão na altura era arranjar uma casinha para nós, mas não sabia como fazer. E foi aí que pensei em estabelecer-me, e assim foi. As pessoas, não sei porquê, mas gostavam muito de mim, o que já era uma vantagem. Os clientes começaram a vir, gostavam muito de mim, do meu trabalho e da pontualidade. Ao fim de algum tempo já tinha uma clientela grande e foi sempre crescendo.
Quando se estabeleceu foi ali onde hoje é conhecida como a travessa do vitorino?
Sim, foi sempre aí.
Aquela zona do centro devia ser muito diferente do que é hoje, não?
Sim, sem dúvida nenhuma. Eu estive ali uma quantidade de anos, ao longo do tempo fui tendo alguns empregados, ao todo chegámos a ser 14 pessoas. Fui a maior oficina artesanal do país. Eu tinha muito gosto naquilo que fazia, eu fiz milhares de serões e nunca me lembro de ir fazer um serão contrariado.
Antes de ir para o ofício com 13 anos, imaginava ser outra coisa na vida?
Não, eu antes só pensava em jogar à bola, brincar, jogar ao peão, aos pardais. Portanto, não idealizava outra coisa, fui para ali e gostava mesmo daquilo que fazia.
Quando é que nascem estas botas que são tão características de Almeirim?
Já se fazia um pouco, naquele senhor onde eu estive, o Rogério Soares, devia ser o melhor artista a nível nacional e muito exigente. Nós lá tínhamos de fazer bem. A maior parte do que eu sei aprendi aí, o resto já é meu. Quando eu me fui estabelecer o meu maior medo era a dificuldade com o desenho, para fazer moldes, mas tive de me desenrascar. Aprendi o que eles me ensinaram e depois desenvolvi outro calçado, como a bota à “Marialva”, que nunca tinha sido feita aqui no Ribatejo, e outros feitios de botas e sapatos. Vinha gente de todo o lado cá. Eu tinha uma clientela muito grande, porque em Santarém havia a escola agrícola e os alunos todos queriam ter um par de botins do Vitorino. De Bragança também tinha muita clientela, parece mentira, ainda por cima naquela altura havia muita dificuldade em pessoas de longe cá virem, só quem vinha eram pessoas com poder.
Estamos a falar de um calçado que durava uma vida.
Aquilo era um calçado todo artesanal, e eu na qualidade do material comprava tudo de primeira. Os sapateiros naquela altura andavam todos a pedir, e eu tive de trabalhar muito para conseguir fazer dinheiro para ter material de qualidade.
Com que idade é que se reformou?
Reformei-me aos 69 anos.
Quando é que surge a sociedade com o Simão?
Quando ele era meu empregado.
Porque é que decidiu fazer uma sociedade?
Foi um bocado por causa da política. Na altura, quando rebentou o 25 de abril, eu aderi ao PS, e acabei por fazer sociedade com ele por causa disso. E ele na altura aceitou logo, mas já eu tinha a vida orientada.
O que significa para si a “Travessa do Vitorino”, passados tantos anos de não estar ligado a ela?
Eu acho que tinha um bocadinho a ver como se tratavam as pessoas. Eu talvez tivesse jeito para atender as pessoas e graças a isso ganhei nome. Um homem ser sério é um dever do cidadão. Mais de metade de Almeirim eram meus clientes, não só para botins, mas eu fazia também consertos. E assim ficou a Travessa do Vitorino, é esta a minha vida.
Tem pena de nenhum dos filhos ter seguido a área, ou não?
Não, eu queria que eles escolhessem aquilo que gostassem, porque a mim foi-me imposto, mas eu tenho outra mentalidade. Tinham de ser eles a escolher aquilo que queriam, o meu filho é contabilista e a minha filha é professora.
Para filho único, construiu uma família muito grande, três filhos, seis netos e nove bisnetos. Eles perguntam-lhe como era no seu tempo?
Chegaram-me a perguntar muitas vezes e mostravam-me muitas vezes aos filhos como uma referência de vida. O maior prazer que eu tenho é eles gostarem e mostrarem-me aos filhos deles como uma referência da minha maneira de ser.
Como é que gostaria que um dia o recordem?
Nunca pensei nisso. Há dias o Rotary fez-me uma homenagem. Eu até nem queria. Eu nunca valorizei muito essas coisas, mas uma coisa que eu gostava é que me lembrassem como uma pessoa honesta, que graças a Deus sou.
O senhor sente-se um bocadinho pioneiro deste calçado tradicional que é associado a Almeirim, como os botins?
O calçado para o Rancho Folclórico de Almeirim, eu é que o fazia todo, e não só, também para os ranchos aqui à volta, ranchos emigrantes. Sem dúvida nenhuma que sou um bocadinho o pioneiro.
O calçado para os filhos era também o senhor que fazia?
Sim, até uma certa altura. Passado uns anos, a coisa caiu um bocado. Eu fui o maior artesão do país, mas depois apareceram as fábricas. As pessoas antes, todas queriam ter um par de botins, mesmo pessoas de fora que vinham cá fazer a vindima ou rapaziada que andava a estudar iam fazer vindimas ou apanhar tomate, para ter dinheiro para comprar um par de botins, porque os pais não tinham posses.
Não eram baratos?
Não, nem podiam ser. A coisa bem estruturada e com as contas sempre bem feitas eu ganhei sempre dinheiro, ganhava eu e os meus empregados que eram os que ganhavam melhor de todos. Só se folgava ao domingo.
Trabalhou sempre muito?
Muito. Eu fazia serões até às 02h00 e 03h00 da manhã. Depois a minha mulher foi uma das que fez parte de juntar o calçado. Juntar, é coser o botim ou a bota da parte de cima e depois era ir para a forma. Foi obrigada a dar-me uma ajuda, porque na altura não tinha ninguém. Havia cá duas senhoras que eram ajuntadeiras, mas elas eram mais velhas. A minha mulher, por acaso, aceitou e depois até ensinou à mulher do Simão e trabalhavam as duas naquilo.
Essas mãos valem ouro?
Para mim valem. Para mim não foi esforço, porque eu gostava mesmo daquilo que fazia. Nestes anos todos nunca menti a ninguém, porque tinha a vida toda organizada para fazer isto. Aquilo que eu vi em “cachopo” eu pus em prática.