Tentem visualizar um daqueles empregados de mesa super eficazes que conseguem levantar uma mesa de 10 pessoas toda de uma vez. Quatro pratos em cada mão, uma travessa equilibrada no cotovelo direito, tres copos de vinho em cima dos pratos da mão direita e uma garrafa vazia debaixo do braço. Mesmo assim ainda pede a alguém que lhe meta os cestos do pão em cima da travessa com resto das febras de coentrada e lá vai ele para a copa naquele equilíbrio de fio da navalha! Estão a ver? Pronto, correr ultra distâncias é mais ou menos isto! Passo a explicar com um exemplo da vida real.
Quatro e meia da tarde, já tinha deixado para trás mais de 50 dos 85km a que me tinha proposto fazer nesta edição do Madeira Island Ultra Trail. Tinha começado a recolher pratos há mais de nove horas, ainda de noite, na outra ponta da ilha. Além da distância, as pernas acumulavam cerca de 4500 metros de subida, o equivalente a subir do centro da Covilhã à Torre três vezes. A loiça suja já era muita, mas tinha de arranjar espaço para mais! É que se subi 4500m também os tive de descer, não fossem os músculos da descida ficarem a rir-se dos músculos da subida. Toca de empilhar os pratos de sopa todos no braço esquerdo, que ainda vai leve. Já o direito estava há muito perto do limite. Uma má gestão da hidratação fechou-me o estômago, estava sem comer há horas e só de pensar em comida agoniava. “Talheres? Pois com certeza, meta aqui em cima, sff!”.
Quando dei por mim até nos bolsos levava colheres de sobremesa, um copo de vinho equilibrado na ponta do nariz e loiça suja suficiente para gastar um litro daquele detergente que usaram na inauguração da Ponte Vasco da Gama. O pior de tudo é que tinha de seguir naquele equilíbrio precário mais 35km, a distância que me separava da meta em Machico!
Correr ultra distâncias é isto. É partir e não saber, de todo, o que nos espera. Vamos acumulado variável atrás de variável, como peças de loiça que transportamos de forma periclitante. Há coisas para as quais nos podemos preparar, como o tipo de terreno, a distância ou se tem mais ou menos subidas. Mas todo o resto é imprevisível. Um dia de clima extremo, uma queda, um torcer do pé, aquela barrita que cai mal e desliga o estômago, a privação de sono que provoca alucinações, o cansaço extremo, uma lanterna sem pilha, uma garrafa que nos esquecemos de encher e ficamos sem água, até – perdoem-me a imagem tão gráfica – ir à casa de banho e não limpar bem o rabo. Ah pois, não queriam saber o que é lidar com assaduras no rabo ao fim de 20 horas e 100km a correr!
Naquele dia, na Madeira, vi-me outra vez nessa situação. Tão carregado de loiça que o mais fácil era largar tudo para o chão e deitar-me a um canto. De vez em quando lá caía um talher ou uma chávena de café. Com calma recolhia-o, respirava fundo e continuava. Foi naquele jogo do fio da navalha que cheguei ao fim, a 63ª vez que finalizei um prova com distância superior a 42km. E desta vez nem fiquei com o rabo assado!