Despertei 4, 5, 6 vezes durante a noite. O normal. Mesmo depois de tantos km em montanha continuo a ficar ansioso antes de uma prova. Levantei-me uns minutos antes do despertador, ainda de noite, e equipei-me em silencio, para não acordar a minha família. Esses sim, a dormir confortavelmente na nossa casa alugada para o fim de semana. Abri a porta devagar e deparei-me com o mais cinzento dos dias de Inverno. As nuvens baixas e uma chuva grossa empurrada por um vento fortíssimo pintavam o amanhecer com uma palete de cores entre o preto e o branco. Arrepiei-me, apertei um bocadinho mais o impermeável, enfiei o capuz e fui ter com o meu amigo Pedro, que me ia levar até à partida.
Na curta viagem até Sever do Vouga, numa estrada cheia de cascas de eucalipto empurradas pelo vento e sempre debaixo de chuva, o Pedro fazia-me perguntas sobre a prova. São 55km, disse-lhe. Sim, nestas montanhas cujo cume nem sequer conseguimos ver, vão ser mais de 3000 metros de subida acumulada e demorarei pelo menos 7 horas! Expliquei-lhe. Ele conhece-me bem, já acompanha estas aventuras há algum tempo, mesmo assim, naquele amanhecer cinzento, frio e molhado, não conseguiu resistir a perguntar: “porquê? Já sabes que vai custar e acabar com o sofrimento é tão fácil, literalmente é só parar. Porque é que vais até ao fim?”. Encolhi os ombros sem saber bem o que dizer. Pensei bastante nisso durante as horas que andei pelo Vale do Vouga.
Partimos às 8:30 em ponto, eu e mais 200 almas. Debaixo de chuva, claro. Essa tem sido tanta nos últimos tempos e naquele dia em particular que toda a serra pulsava vida. Cascatas jorravam das encostas, os trilhos eram autênticos ribeiros que confluíam numa espuma branca e furiosa nos pequenos vales e que descia a montanha até ao Rio Vouga.
Pensei no que o Pedro me perguntou e no que levava um homem de 40 anos a estar ali. Alguém que nunca ganhou nem nunca vai ganhar nada, nem sequer vai a pódios. Podia tão facilmente ceder à conversa de não ter tempo para treinar por causa dos 3 filhos, de já não ter idade para aquilo e em todas as desculpas tão fáceis de arranjar.
Pensei nisso nos primeiros 3 ou 4 ribeiros que atravessei com água pela cintura, a fazer força para não ser levado pela corrente ou enquanto enterrava a perna até ao joelho em lama. Pensei nisso quando percebi que as 7 horas previstas iam claramente ultrapassar as 8 e ainda estava a pensar nisso naquela ultima subida a um cume de 800m, debaixo de uma chuva torrencial e vento ciclónico, que me empurrava para trás e abria por completo o impermeável, que não consegui fechar porque as mãos estavam tão geladas que perdi a sensibilidade para puxar o fecho. Pensei nisso até que deixou de fazer sentido pensar no que quer que fosse a não ser dar o próximo passo, produzir calor para não gelar, não escorregar na lama, descer a montanha, controlar as cãibras e as assaduras, meter mais um gel para não acabar o combustível. Tudo o resto na minha cabeça se apagou a não ser aquela luz ao fim do tunel, tinha que chegar ao fim!
Percebi no fim a razão. Enquanto estava com a minha família e a família do Pedro a jantar num restaurante em Sever, entre conversas, sorrisos e mais um ou outro copo de vinho. Numa vida rotinada, sedentária, conformada e com stresses diários, fazer algo que nos leve ao extremo físico e mental, que resuma a nossa existência a um instinto quase de sobrevivência, nem que seja por umas horas, faz-nos apreciar ainda mais o dia de sol que vem depois do mais cinzento dos dias de inverno.
Filipe Torres