“Ponham-nos a ler”

A linguagem constitui a base da comunicação e do raciocínio, que são competências indispensáveis para a vida em sociedade e para o sucesso escolar. O corolário da aprendizagem reflete-se no sucesso pessoal e nos níveis de literacia da população. 

Infelizmente tem-se vindo a constatar um acréscimo dos problemas da linguagem e das dificuldades de aprendizagem. O Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Programme for International Student Assesment- PISA), que avalia trianualmente a literacia dos jovens de 15 anos nos domínios da matemática, da leitura e das ciências, em 2023 veio quantificar esse declínio a nível internacional. A verdadeira justificação para esta evolução não é conhecida, mas é provavelmente multifatorial. Michel Desmurget, um neurocientista francês, tem sugerido algumas causas e apontado algumas soluções. Depois da publicação de “A Fábrica dos Cretinos Digitais”, onde alertou para os problemas relacionados com o uso precoce dos ecrãs, veio sugerir no seu livro mais recente “a leitura como o melhor antídoto para os cretinos digitais”, enumerando os benefícios que a leitura apresenta no desenvolvimento socioemocional e cognitivo da criança, como se divulga em seguida.

Todas as crianças gostam que lhes contem histórias desde os primeiros meses de vida. Esta interação, estabelecida desde uma fase muito precoce, constitui uma excelente oportunidade para estimular a linguagem, a comunicação, a capacidade de concentração e a gestão das emoções. A linguagem escrita tem uma construção gramatical e um vocabulário mais ricos, pelo que a leitura passiva é altamente recomendada. O livro material acrescenta vantagens às suas alternativas digitais porque estimula a motricidade fina, experimenta sensações paralelas que reforçam a estimulação e não desvia o foco de atenção do conteúdo literário para o mecanismo de funcionamento digital. A estimulação será tanto maior quanto maior for a diversidade lexical, a extensão das frases, a interação conversacional, a capacidade de resposta usada pelo adulto e a frequência de interações entre a criança e os seus contadores das histórias. 

O processo de aprendizagem da leitura ativa não é confortável nem gratificante para a criança numa fase inicial. Exige a assimilação e interiorização preliminar de uma série de regras pouco intuitivas e pouco gratificantes, mas indispensáveis para decifrar o código escrito. Incluem: direção orientada da esquerda para a direita, de cima para baixo, das primeiras páginas para as últimas; relacionar um som com uma letra, com uma sílaba e, posteriormente, com uma palavra; descodificar a sequência de uma frase gramaticalmente correta e, finalmente, de um texto ordenado. A integração e a coordenação natural de todos estes conceitos serão indispensáveis para descodificar a escrita de uma forma progressivamente mais rápida. A verdadeira compreensão do conteúdo escrito só ocorrerá numa fase mais avançada da aprendizagem da leitura, pelo que a criança deve ser questionada ou convidada a reproduzir a história lida previamente. Só depois de esta fase estar devidamente consolidada é que a leitura ativa poderá vir a ser usada como forma de aquisição de novos conhecimentos. Na escola, a criança aprende a descodificar a escrita, mas é no seio da família que ela é incentivada a compreender a leitura. Neste contexto, o exemplo do adulto será determinante, já que as crianças são muito melhores a imitar do que a obedecer. 

Quanto maior for o volume de leitura maior será a aquisição de vocabulário e o domínio da complexidade gramatical, o que desenvolve o raciocínio e a capacidade de argumentação e de comunicação; maior será a cultura geral, despertando a curiosidade e facilitando a apreensão de novos conhecimentos; maior será a capacidade de concentração e de memorização; maior será a capacidade para estabelecer ligações dos elementos distintos do texto, desenvolvendo os mecanismos da compreensão e raciocínio; maior será a criatividade, fruto da interligação dos inúmeros conceitos previamente apreendidos; maior será a miríade de simulação de vivências fictícias, onde a interiorização dos personagens permite experimentar emoções e pontos de vista controversos e mesmo contraditórios, o que apura a capacidade crítica e as competências socioemocionais do leitor. A duração e a seleção do conteúdo apresentam impacto diferente no desenvolvimento linguístico e intelectual da criança. Um bom leitor deverá exercitar cerca de 30 minutos por dia. O livro (sobretudo de ficção) destaca-se como o mais relevante, seguido dos artigos de jornal e de revistas; só depois vem a banda desenhada, com a manga, os blogues e as redes sociais a remeterem-se para um plano de retaguarda. É mais fácil ver uma série televisiva, onde a representação do respetivo cenário pode ser perfeita. Mas a incapacidade de os espetadores penetrarem no âmago da alma dos personagens confere ao livro características socioemocionais incontornáveis.   

Em suma, os pais devem estar cientes de que falar precocemente com os bebés, ler-lhes histórias e dar nomes às coisas e ao mundo que os rodeia são indispensáveis para o estímulo precoce da linguagem. A leitura destaca-se como um método privilegiado na aquisição desta e de outras competências. Mas a transição da leitura passiva para a ativa constitui um processo moroso e pouco aliciante, que requer paciência, perseverança, treino, esforço e motivação. Os hábitos de leitura devem ser incentivados sob um prisma lúdico e recreativo e nunca como forma de punição e devem ser perpetuados ao longo da vida.

Os benefícios da leitura na estimulação do crescimento e desenvolvimento da criança só encontram paralelismo em atividades como o brincar, a música e a atividade física. Por isso a leitura desempenha um poderoso remédio contra o insucesso escolar. “Uma criança que lê não alarga apenas o seu presente, constrói o seu futuro”. Para além disso, constitui um instrumento valioso para perpetuar a cultura dos povos. “Não é preciso queimar os livros para destruir uma cultura, basta que as pessoas deixem de os ler”, como ilustrado em Fahrenheit 451 de Ray Bradbury. Infelizmente os hábitos de leitura têm vindo a ser progressivamente substituídos por atividades recreativas digitais. É imprescindível que os simples hábitos tradicionais de leitura sejam restituídos às famílias, sob risco de que o progresso digital venha a arruinar o destino da próxima geração. Também é fundamental que os educadores tenham consciência de que as escolhas educativas adotadas na infância podem transformar a vida e o futuro das suas crianças.


Opinião, por Teresa Gil Martins