MEMÓRIAS E CURIOSIDADES DE UM DESPARECIDO IMPÉRIO: 5. Paz, respeito e convivência nas praças portuguesas norte africanas

Já aqui referimos que em cem anos, entre 1415 e 1514, cerca de doze territórios da costa Norte marroquina foram dominados pelos portugueses uns por poucas décadas, outros por mais de um século, à excepção da praça de Mazagão, apenas abandonada em 1769, mais de dois séculos depois, sendo centenas de famílias com os seus escravos levadas para a Amazónia, onde fundaram a Vila de Nova Mazagão. As conquistas destes territórios estiveram sujeitas a diferentes estratégias, que variavam em função de diferentes objectivos, fosse económico, fosse a segurança da navegação no Estreito, fosse a destruição de bases de corso e pirataria marroquinas, fosse até para impedir qualquer pretensão espanhola na costa africana. Outros voluntariamente se acolheram sob a protecção portuguesa, reconhecendo o governante mouro local, o rei de Portugal como “seu senhor, por si e por seus concidadãos, presentes e futuros”.

É de referir que as acções militares de conquista destes territórios costeiros à qual se seguia uma acção ofensiva, implicavam desembarques em circunstâncias tendencialmente hostis, que obrigava a um planeamento meticuloso executado por forças treinadas, organizadas e equipadas com distintas funções de combate, pois todo o processo de desembarque tinha geralmente lugar debaixo de fogo de artilharia e perante forças adversárias de infantaria ou de cavalaria. Este conhecimento e experiência dos portugueses em “operações anfíbias” no Norte de África, será usado nos mares do Oriente nos séculos seguintes.

Na crónica anterior referi a aspectos curiosos intrínsecos ao combate, fosse no processo da luta, da coragem e até de acidentes. Falemos hoje do antagónico tal como paz, respeito e convivência pois a partir de 1510 surge um intrigado jogo de lealdades, alianças, estratégias e interesses, com destaque para o chefe muçulmano sheik Yahya Ben Tafu, o chefe de tribos da região de Safim, que privou de amizade com o rei D. Manuel I, que o recebeu mais de uma vez na corte em Lisboa e o investiu como Alcaide de Duquela, território de milhares de quilómetros quadrados, conhecida como a zona dos “mouros de pazes”, qual esforço (não alcançado) da Coroa portuguesa, na criação de um Marrocos português. Ainda na primeira metade do século XIV, com a navegação muçulmana afectada pela peste e diversas crises, sem capacidade de garantir uma ampla movimentação dos seus barcos de maior calado nas águas do Mediterrâneo, foram alguns navios portugueses, que sob juramento de segurança, transportaram marroquinos árabes para a realização do seu “Hajj”, nada mais que a sua peregrinação a Meca, algo que todo o fiel deve cumprir pelo menos uma vez em vida. Outro exemplo de respeito e convivência dá-nos D. Mécia Carvajal, viúva de D. Rodrigo, capitão-mor de Santa Cruz do Cabo de Guer que morrera na explosão acidental de um torreão provocado por um artilheiro. Passado um ano e apesar da morte do marido e cativeiro dos irmãos, D. Mécia apaixona-se, torna-se muçulmana e casa com o Xarife Mohammed-Ech-Cheikh. Veio uns tempos depois a falecer de parto, em 1544, dizendo uns, por não ter resistido, outros, porque envenenada pelas demais esposas do Xarif, porque preteridas.

Muita foi também a convivência entre os marroquinos e comerciantes, pescadores, contrabandistas, homiziados e perseguidos portugueses, que encontraram abrigo em Marrocos, sobretudo os conversos ou renegados que aos milhares se integraram na civilização muçulmana, contribuindo de forma decisiva para um possível diálogo e uma notória aproximação cultural, enquanto arquitetos de um património material e imaterial comum. Um houve, o fidalgo Luís Gonçalves, preso numa das emboscadas, na década de 50 do século XVII, que irá no palácio marroquino ter responsabilidades de criado-preceptor de uma criança de 3 anos. Essa criança veio a ser o futuro sultão Mulai Ismail que reinou entre 1672 a 1727. O seu trabalho no palácio foi deveras apreciado e a sua conduta muito admirada pelo próprio sultão que a ele se afeiçoara. Por decisão do sultão e a pedido de Luís Gonçalves este foi libertado 33 anos depois. O sultão Ismail veio a ser altamente sanguinário e o mais extravagante de todos os sultões de Marrocos: mandou construir a cidade de Mekinés, conhecida como a “Versalhes de Marrocos”, devido à sua arquitectura extravagante, e, das 500 mulheres que o sultão teve, entre esposas e concubinas, teve 888 filhos (548 rapazes e 340 raparigas).

Depois da perda de Santa Cruz em 1541, que permaneceu portuguesa cerca de 39 anos, Portugal inicia nesse mesmo ano o recuo estratégico na região Sul de Marrocos, que por razões várias levarão ao abandono de outras praças, pois de ano para ano acentuava‐se o seu isolamento. Marrocos começava a ter menos importância para Portugal que se virava agora, cada vez mais, para o Brasil, pois a presença no Oriente estava consolidada. Tal abandono deveu-se também ao facto das várias funções desempenhadas por estas fortalezas terem deixado de fazer sentido: os produtos vindos do Oriente eram mais atractivos, a navegação já não se fazia junto à costa, pois a marinha sofrera um grande desenvolvimento e como refere Themudo Barata, “muitas das elites portuguesas estavam fascinadas pela miragem de riqueza que a Índia e o Brasil significavam”.

O sucessivo abandono destas praças leva o Papa a emitir neste ano a bula «Licet Apostolicae Sedis», permitindo a demolição de igrejas nestes lugares do Norte de África.

[Bibgª: G. Zurara, D. Lopes, F. Paula, P. Cenival e F. T. Barata. Por decisão pessoal, o autor não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico].

Cândido de Azevedo