Na crónica anterior abordei as conquistas de territórios na costa norte africana até aos finais do século XV. Foram aqui referidas as cidades de Ceuta, Alcácer-Ceguer, Arzila, Tânger e Beni Boufrah controladas pelos portugueses e alguns acontecimentos relevantes acontecidos por lá. Também foram referidas as descobertas, acidentais diga-se, dos arquipélagos da Madeira e dos Açores. A descoberta destes verdejantes arquipélagos aliados a um importante impulso através do estímulo do Infante Dom Henrique que patrocinou a “escola” de Sagres, bem como inúmeras expedições, vai levar a navegação portuguesa, ainda no século XV, ao périplo africano com excelentes navegadores com destaque para Gil Eanes, Diogo Câo, Bartolomeu Dias e Vasco da Gama que alcança a Índia, mesmo no final do século, em 1498. Mas destes territórios, após as várias tentativas de passar o Cabo Bojador (1434), falaremos em outras crónicas.
Por agora, completemos a ocupação “de facto” de territórios no Norte de África (costa marroquina), devido ao assentamento das forças portuguesas na primeira metade do século XVI, fosse via ocupação, para impedir a pretensão da Espanha, já senhora das Ilhas Canárias, em iniciar a ocupação da costa africana (Santa Cruz do Cabo de Guer – 1505, Ben Mirao – 1507), ou por daí partirem muitos dos ataques contra os navios portugueses (Mogador – 1506 e Aguz – 1519), fosse ainda via cedência ou convite (Safim – 1508, Azamor – 1512, Mazagão – 1514). Há que realçar que Azamor antes de se tornar domínio da coroa portuguesa, era já vassala e tributária de Portugal, pagando um tributo anual de dez mil unidades do apreciado peixe sável. Outros territórios existiram onde os portugueses tiveram uma curta presença ou efémera passagem como Larache, Anafé, Graciosa, Seinal e S. João de Mamora, este de triste memória, pois os 200 navios e 8 mil homens que para aí partiram em Junho de 1515 com a determinação de construir um forte não o conseguem concluir, pois numa maré vazia, crê-se a 10 de Agosto de 1515, a esquadra é atacada por terra pelas forças do sultão de Fez e não conseguindo manobrar pelo tamanho dos barcos, é parcialmente destruída, saldando-se numa enorme derrota pois num só dia foram mortos cerca de 4.000 portugueses e destruído uma centena de barcos. Refere Damião de Góis que “esta foi a maior perda de gente e munições de guerra que el-rei D. Manuel teve em todo o tempo do seu reinado”. Esta derrota é tida como o final da expansão em Marrocos.
A presença portuguesa nestes territórios adquiridos nas primeiras décadas do século XVI de tudo teve um pouco: lutas, coragem e acidentes, alternando-se com períodos de paz e convivência. A vida das guarnições não era fácil: para além do clima inóspito eram obrigadas a viverem encerradas em espaços exíguos, apenas reabastecidos por mar. O dia a dia rotineiro dos trabalhadores do campo iniciava-se às primeiras horas do dia, ao som de 5 badaladas da torre, após cuidadoso exame ao terreno pelos atalaias, e a ordem para o cessar dos trabalhos ou regresso imediato ao interior da fortaleza era por via de tiros de canhão.
Abordemos os períodos de lutas e coragem. Os cercos constantes dos mouros, principalmente por forças saadianas de Suz às muralhas de Santa Cruz do Cabo de Guer, Aguz e Mazagão, leva D. João III a mandar construir nesta última uma nova fortaleza à volta da anterior, que finalizada em 2 meses viria a ser a primeira cidade da expansão ultramarina planeada por portugueses; dos cercos da tribo de Beni Regraga em Mogador, o que obrigou algumas vezes à vinda de reforços portugueses, quer de Lisboa, quer da Madeira; ou ainda dos ataques constantes das tribos Haha em Aguz que levaram à rápida construção do seu forte inicial em madeira, para uma nova construção de pedra e cal em estilo manuelino e que deu origem à lenda, ainda hoje existente, de que os portugueses teriam erguido o forte inicial numa só noite, com o auxílio dos anjos, isto porque numa só noite se montaram as muralhas e a torre, em madeira pré-fabricada, trazidos nos navios.
Estes cercos e ataques irão celebrizar pela sua coragem muitos portugueses. Destaquemos alguns. Em 1510 Nuno Fernandes de Athaíde, Capitão-mor de Safim, celebriza-se nas famosas “correrias norte africanas” desafiando adversários para o combate, com demonstrações de valentia, em saídas rápidas a cavalo. Outro bravo cavaleiro de Safim que, de tão temido, ganhou tal fama que se tornou vulgar entre os mouros, quando desavindos, um amaldiçoar o outro dizendo a expressão “lançadas de Lopo Barriga te colham”. Em Mazagão de entre muitos que aqui se destacaram em combate ficou célebre por volta de 1595 António Rodrigues, um jovem garboso de trejeitos gentis e presença de espírito, um destemido cavaleiro que, além de cavalgar contra os acampamentos inimigos, muitas vezes se esgueirava até ao campo contrário para caçar porcos bravos ou pegar lenha e feno e a quem as moças não paravam de desafiar. Aos 16 anos já lhe chamavam o “terror dos mouros” e os inimigos conheciam-no por “o jovem fronteiro de África”. Este fugira da casa aos 13 anos e como grumete chegara a Mazagão onde serviu como corajoso soldado muitos anos até que a filha de um militar por ele se apaixonar, o que o obriga, a revelar o corpo: afinal era uma Antónia! Porque mulher, é obrigada a regressar a Portugal onde lhe passaram a chamar “cavaleira portuguesa” sendo-lhe atribuída uma tença anual por ter servido o reino com bravura.
Os acidentes acontecidos com os portugueses nas praças marroquinas foram muitos e de tipo diferente. Vejamos alguns:
Quando as forças de Mohammed-Ech-Cheikh, Xarif de Suz, impunha um grande cerco já de seis meses à praça de Santa Cruz do Cabo de Guer, um bombardeiro português, em Março de 1541, fez explodir involuntariamente um torreão, onde morreram D. Rodrigo de Carvajal, Capitão-mor da Praça e trinta cavaleiros portugueses. Esta situação leva à rendição da guarnição portuguesa, após a promessa do Xarif de lhes serem poupadas as vidas. Mohammed-Ech-Cheikh, cumpriu a sua palavra.
Para uma destreza para os combates, necessitavam as guarnições militares de práticas físicas, pelo que nos frequentes festejos todos gostavam de se mostrar como “homem de cavallo”, apresentando-se aptos a jogos equestres, como o jogo do tavolado. das argolas ou preferencialmente o jogo das canas, jogo considerado “de ligeireza, destreza e escaramuças, um género de peleja de homens de cavallo, que acometem os contrarios, & daõ voltas, & com canas se perseguem”. Pois o acidente verificou-se no dia de São João de 1586, durante as festas, quando Gil Fernandes de Carvalho, governador de Mazagão, participando nos jogos equestres, caiu do cavalo tão desastradamente, que morreu de imediato, levando a uma crise de sucessão.
Ao longo da Expansão Portuguesa casos houve em que a punição para os portugueses da guarnição militar era a morte, como forma de servir de exemplo. Geralmente esta punição era atribuído para casos de traição, rendição prematura sem estarem esgotadas todas as hipóteses de defesa, homicídios dolosos ou até de tratamento cruel, degradante ou desumano, mesmo para com o inimigo. Vejamos um caso que se passou na nossa cidade de Arzila, em Marrocos onde foi atribuída a pena máxima: a morte. Nos anos 30 do século XVI Marrocos vivia um período de transformações políticas. O rei de Fez via o seu poder na costa norte africana diminuído perante os irmãos “xarifs” (líder muçulmano que se julga descendente de Maomé) Amade Alaraje e Momé Axeique, que se estavam a impor-se na região. Procurou então o rei de Fez fazer as pazes com o rei de Portugal. O tratado de paz foi assinado entre os embaixadores designados Mulei Abraem e D. João Coutinho, capitão de Arzila, junto ao rio que separava os “dois reinos”. Este acordo dizia que por tempo de onze anos haveria paz e nenhum acto bélico entre eles. Pouco depois da assinatura do acordo, o cavaleiro Rui Gomes ao cavalgar os campos próximos de Arzila, encontra e, sem necessidade alguma, mata um mouro outrora inimigo, que, garantido pela assinatura da paz descuidado se encontrava. Vindo a saber-se, para encerrar o incidente provocado, foi Rui Gomes preso, e provada a sua culpa que poderia colocar em risco a paz na região, foi condenado à decapitação, pelo que, diz-nos o cronista “… para exemplo dos outros cortou-se-lhe a cabeça em praça pública”.
Dos períodos de paz e convivência entre as guarnições militares portuguesas e forças árabes na costa marroquina, falaremos na próxima edição.
[Bibgª: G. Zurara, D. Lopes, F. Paula, R. Alleau, R. Bluteau e J. Serrão. Por decisão pessoal, o autor não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico].
Cândido de Azevedo