Ricardo Dias Felner, crítico gastronómico, fez um périplo por quatro das mais célebres casas ribatejanas da especialidade e saiu feliz de todas elas.
Primeira paragem, O Forno. Eu e a minha companheira de comezainas rejubilamos à primeira colherada: “Deliciosa.” “Bem boa.” “Como é que só custa 6,70 euros?!” Meia hora depois, saímos para o tórrido sol ribatejano, queimando os pés no empedrado em redor da Praça de Touros. É nesse raio que tudo acontece: em 300 metros, encontramos todos os templos sopeiros de Almeirim.
Os termómetros marcam 40 graus, mas ninguém desmobiliza. Ainda não é uma da tarde, mas já se vê fila à entrada d’O Pinheiro, uma trintena de pessoas à frente. Vinte minutos passados, e estamos sentados para a segunda prova. Mais 20 minutos, e estamos despachados. Veredicto? “Ui!” “Fantástica!” “Excelente!”
Parece difícil ficarmos desiludidos com uma sopa da pedra de Almeirim. O prato tem hoje uma consistência notável, como voltaria a comprovar na Tertúlia da Quinta e n’O Toucinho.
Encontrar um único vencedor, entre os restaurantes mais célebres, é uma tarefa árdua, que se decide em detalhes, em questões de gosto pessoal ou em acasos. Em parte, terá que ver com a certificação do prato. Desde 2022 que a sopa da pedra de Almeirim é considerada uma Especialidade Tradicional Garantida, pela União Europeia. O processo de candidatura à certificação foi promovido pela Associação de Restaurantes da Sopa da Pedra, pelo Turismo do Alentejo e Ribatejo, onde estão representados os restaurantes mais relevantes de Almeirim, e pela câmara municipal.
Uma Especialidade Tradicional Garantida (ETG) distingue-se de outras certificações, por não estar ligada a uma área geográfica específica, como é o caso da Denominação de Origem Protegida. Mas também por dar relevo a aspetos mais ligados às tradições, à forma como o produto é fabricado ou à sua composição. Um produto registado como ETG fica protegido contra a falsificação e a utilização indevida, sendo certo que se pode certificar uma sopa da pedra de Almeirim em Leiria, Bragança, Viseu ou onde quer que seja – desde que cumpra a receita.
Os preceitos da receita da sopa da pedra de Almeirim
O importante é que se sigam os preceitos da receita licenciada pela União Europeia. Entre eles, que devem ser usados 16 ingredientes, como feijão-catarino, enchidos, chispes e/ou faceira de porco, toucinho curado, batata, cebola, alho e coentros. E que não há refogado: vai tudo para dentro de uma panela com água a ferver.
Assim, o que distingue uma sopa de outra, nos restaurantes, mais do que tudo, é a qualidade e a quantidade dos ingredientes, a técnica de corte e o momento em que cada ingrediente é cozinhado – ou seja, os tempos de cozedura.
Cumpridos os parâmetros da receita certificada, é preciso uma análise minuciosa para encontrarmos pontos fracos. E mesmo esse exercício é falacioso: o que parece um defeito, para mim, pode não o ser para outros. Alguns exemplos. Achei que a sopa d’O Forno estava ligeiramente pesada e densa; da mesma forma, considerei excessiva a cremosidade da sopa da Tertúlia da Quinta – mas estas impressões não foram encaradas como falhas para os meus parceiros de comezainas, nas duas visitas recentes que fiz. Por outro lado, na segunda visita a O Pinheiro, desta feita ao jantar, achei a sopa ligeiramente mais líquida do que na primeira visita, mas o amigo que me acompanhou nessa jornada, ocorrida uma semana depois da primeira ronda, achou que era uma virtude, e não um problema.
O Toucinho, a batata e os enchidos
Mais evidentes e dissuasoras foram duas características d’O Toucinho, a casa onde tudo terá começado, no ano de 1960, ou, pelo menos, onde surgiu o nome de batismo – cuja morada fica numa ruela junto ao largo da Praça de Touros.
Apesar de a sua sopa da pedra ser muito saborosa, a batata d’O Toucinho surgiu em troços disformes e grandes. “Ah, sim, foram cortados à máquina”, justificou o empregado que nos serviu. No caso, o corte da batata é mais do que um pormenor. Diz a receita certificada que a batata deve ser “cortada em pequenos cubos irregulares”. Isso não sucedeu n’O Toucinho, que aparentemente se orgulha do processo mecânico.
Em matéria de batata, a Tertúlia da Quinta venceu a concorrência, com uns cubinhos pequenos, brunoise de chef, logo se seguindo a batata d’O Pinheiro, no ponto de cozedura perfeito – firme, sem estar encruada –, com as arestas ligeiramente arredondadas – limadas para que o caldo ganhe um certo aveludado. No calibre do corte, a d’O Forno era maior do que estas duas, mas, ainda assim, bem.
Outra diferença da sopa d’O Forno foram as carnes. A terrina continha vários cortes com osso, dos chispes e do pernil – algo que não encontrei nas sopas d’O Toucinho, d’O Pinheiro e da Tertúlia da Quinta. Não me parece que o osso desclassifique a sopa, contribuindo, antes, para torná-la na mais rústica de entre as provadas.
Se a sopa d’O Forno era a mais rústica, a da Tertúlia da Quinta pareceu-nos a mais delicada – a mais gourmet, diriam alguns. Não vejo isto como um defeito, mas também julgo não ser merecedor de pontuação extra, dado que a essência do prato é popular.
Quanto aos enchidos, todos poderiam ser de melhor qualidade, mas cumprem. Em geral, os chouriços, as morcelas e as farinheiras nas quatro sopas eram de gama média: não há enchidos de tipo artesanal, mas também não encontrará desses chouriços de gordura prensada pintada com pimentão e corante.
Fonte: www.deco.proteste.pt