Após aquele dia e hora em que se deu início a uma das mais profundas transformações na organização do país, na sua extensão territorial, na assunção plena de direitos de cidadania e na procura de uma nova forma de desenvolvimento, passaram já 50 anos. Meio século de vivência democrática. Surge assim, como nuvem na fimbria do horizonte temporal, a memória das transformações então implementadas.
A primeira será o início do processo de descolonização dos vastos territórios em África, a que se concedeu a independência. A seguir a esta prioridade surgiram as transformações políticas e organizativas da vida dos cidadãos e da sua relação com o Estado. Há igualmente a considerar o processo de integração das populações desalojadas com a referida descolonização. Um processo tumultuoso e desorganizado, que motivou a deslocação de centenas de milhares de cidadãos. A relutância do Estado Novo em aceitar o princípio da Independência, arrastando o país para uma guerra interminável, motivou atrasos, os quais conduziram a uma ação militar, que era expectável e necessária. Foram muitas as transformações que se operaram e que trouxeram uma nova forma de ver a vida e o lugar de cada um.
As necessidades, neste tempo presente, de aprofundar a vivência Democrática entre os cidadãos, resulta de uma reflexão sobre o que tivemos e o que hoje existe disponível. A verdadeira Democracia emerge a partir da aquisição de preceitos comportamentais, regras e normas de aceitação do “outro” como interlocutor e interveniente nos processos de organização governativa, justiça social e vida no espaço comum.
Democracia não é um sistema que respeite à individualização ou coletivismo. Ela respeita o individuo no seu grupo e na sociedade em que se insere.
Há sempre um princípio para tudo o que desejamos e se procura que funcione com respeito pela individualidade e pelo ser social que somos todos nós. Neste percurso de 50 Anos, o país e a sua população, passaram por transformações importantes, as quais permitiram o estabelecimento de processos e normas sociais que garantem a vida em comum sem restrições ou imposições de comportamentos, de organização e intervenção, sejam individuais ou de grupo.
É de comparar o antes em que só os senhores, ou filhos de, podiam ascender a determinados cargos, estudos e benefícios. Uns poucos, muito poucos, auferiam das regalias e dos privilégios. Outros, muitos outros, serviam, eram humilhados no seu viver diário, na sua participação na vida comum. O respeito pelos direitos dos cidadãos andava muito pelas “ruas da amargura”. O Estado pouco investia na saúde e na ação social. O mundo do trabalho regulava-se pelas opções da entidade patronal, sendo os sindicatos meras organizações dependentes do estado. A Escola, esse domínio prioritário na formação e preparação dos jovens, apresentava propostas diminutas. A formação liceal, a que se seguia a universitária, funcionava como um funil regulamentador da evolução dos jovens.
Para as mulheres os direitos ao trabalho à escolarização, à igualdade na remuneração, a que se acrescenta a sua participação na vida cívica, tudo era limitado e negado.
Importa hoje compreender as regalias alcançadas, os direitos que se exercem, a escolha livre e pluralista de quem nos governa. A Constituição da República Portuguesa, aprovada a 2 de Abril de 1976, por uma Assembleia Constituinte onde se verificaram confrontos, discussões de ideias e princípios que culminaram na sua aprovação, consagrou o Poder Local como parte integrante do Processo Democrático.
No seu Título VIII, relativo ao Poder Local, enumera os princípios gerais que regularizam o seu funcionamento. Assim, temos o preceituado nos Capítulos I, dos Princípios Gerais; Capítulo II, das Freguesias; Capítulo III, dos Municípios. No período do Estado Novo, com a Constituição de 1933 e alterações subsequentes, as freguesias aparecem como os órgãos a serem eleitos pelos chefes de família da sua área. As Câmara Municipais eram geridas por Comissões Administrativas, sendo os presidentes nomeados pelo Governo, sendo que estes eram escrutinados como bons servidores e aderentes aos princípios ideológicos dominantes. Não existia a Assembleia Municipal. Havia a possibilidade de nomear um Conselho Municipal, integrado por personalidades escolhidas pelo presidente da Câmara.
A Constituição de 1976, consagra o Poder Local, nela se referindo que “a organização Democrática do estado compreende a existência de autarquias locais, que são as freguesias, os municípios e as regiões administrativas”. Estabelece-se que as autarquias são pessoas coletivas territoriais, dotadas de órgãos representativos, os quais visam a prossecução de interesses próprios das populações.
Na sua referência aos órgãos deliberativos e executivos, no seu capítulo III, determina-se que as autarquias compreendem uma Assembleia eleita, dotada de poderes deliberativos e um órgão Executivo colegial, perante ela responsável. Acrescenta-se um procedimento perfeitamente democrático: é eleita por sufrágio universal.
Nesta vivência de meio século muito foi feito pelo Poder Local. Por todo o país as autarquias trouxeram voz e ação aos territórios respetivos, promovendo um desenvolvimento e condições de vida antes não imaginadas. Por aqui, no nosso território, o concelho de Almeirim é bem o exemplo da capacidade interventora dos seus autarcas.
É bom viver em Democracia. Constitui um privilégio e uma aprendizagem inigualáveis exercer funções autárquicas, com a devida humildade e reconhecimento de que se está a intervir para o bem público e satisfação das necessidades das populações.
Eurico Henriques – Presidente da Assembleia Municipal de Almeirim, 10 de Abril de 2024.