Existe uma velha “máxima” que diz qualquer coisa como: “se não sabe do que está a falar, confunda-os”… O relatório da Comissão Técnica Independente (CTI) para avaliar as opções estratégicas de localização para o novo aeroporto em Portugal, tem mais de 3400 páginas… Nada melhor para confundir do que quantidade. O relatório preliminar da CTI foi realizado ao longo de cerca de 1 ano e apresentado no passado dia 5 de dezembro de 2023, tendo o prazo para consulta pública terminado no dia 26 de janeiro de 2024.
No passado dia 18 de janeiro, a CTI teve a oportunidade de apresentar este mesmo relatório em Santarém. A apresentação em si, não trouxe nada de novo em relação ao que já tinha sido divulgado em dezembro, no entanto, houve oportunidade da plateia colocar algumas questões de ordem técnica. Ficou bem patente que a CTI não conseguiu responder à grande maioria das questões, escudando-se nas opções e conclusões que tinha tirado do estudo realizado, sem nada acrescentar. No entanto, ao contrário do que afirmou a Coordenadora da CTI, o relatório elaborado não se baseia em factos. Baseia-se sim, em pressupostos e assunções, muitos destes bastante discutíveis e até “criativos”.
Uma das principais conclusões do relatório preliminar foi a inviabilização da opção estratégica apresentada pelo consórcio Magellan 500 por razões aeronáuticas (de navegação aérea). No entanto, uma leitura mais atenta dos documentos leva a crer que esta conclusão é incorreta. A própria NAV Portugal, autora do estudo relativo à navegação aérea para a CTI, veio desmentir a mesma, afirmando que apenas realizou um relatório técnico e que não considerou qualquer opção como inviável. Todas as opções consideradas, seja qual for a localização, vão implicar alterações à gestão do espaço aéreo. Nesse sentido, a NAV não inviabilizou qualquer das opções, sendo que para o caso de Santarém seria necessário realizar um estudo de otimização de gestão do espaço aéreo.
Aqui, a CTI resolveu substituir o decisor (ou seja, o governo) e tomou a decisão “política” de inviabilizar a opção estratégica do Magellan 500. Estranho é, que no caso da opção preferida da CTI (Alcochete), tenham de ser destruídas 2 bases aéreas (Montijo e Alcochete), mas aqui não foram encontrados problemas. Alterações à gestão do espaço aéreo não são incomuns e são, com certeza, menos dispendiosas do que encontrar uma nova área no país para realocar as bases a destruir, tendo em conta a grande dimensão que uma estrutura dessas implica.
Não deixa também de ser curioso que o relatório da NAV tenha a data de 10 de novembro de 2023 e que a CTI tenha optado por não informar (pelo menos) as partes interessadas, nomeadamente o consórcio do Magellan 500. Apenas revelou o mesmo, e a sua decisão de inviabilizar a opção de Santarém, aquando da apresentação pública. Não se compreende esta atitude quando a própria CTI sublinha que todo o processo foi transparente.
Se todo o processo foi assim tão transparente, porque é que as partes interessadas não foram imediatamente informadas do resultado de relatórios técnicos que as visavam diretamente?
O relatório da CTI contém muitas outras deficiências, apresentando por exemplo, a seguinte consideração: “Uma decisão robusta sobre os impactos reais, do ponto de vista económico, do cenário que inclui o projeto da Alta Velocidade e TTT (terceira travessia do Tejo) deverá ter em consideração todos os custos (económico, social e ambiental) e benefícios. Nesta análise, naquele cenário, apenas se consideram os benefícios da redução do tempo no acesso ao aeroporto, mas não os respetivos custos. Esta limitação altera a avaliação relativa das opções estratégicas, beneficiando as localizações CTA (Alcochete) e VNO (Vendas Novas).” Ou seja, o próprio relatório indica que está viciado. A CTI, para efeitos de análise e comparação das opções, resolveu considerar apenas os benefícios de “potenciais” acessibilidades ao aeroporto, como que se já existissem toda a rodovia e ferrovia (incluindo a alta-velocidade) para servirem um futuro aeroporto em Alcochete ou Vendas Novas, considerando até, alterações ao traçado da linha de alta velocidade que não existem ou foram descartados anteriormente. Aqui, a análise da CTI deixou de ser real para passar a ser surreal… então comparam as diferentes opções estratégicas para a localização de um aeroporto assumindo que todas as acessibilidades já existem? Desviam o traçado da linha de alta velocidade para a margem esquerda do Tejo? Porque é que não desviaram também o traçado da linha de alta velocidade para passar na localização proposta pelo Magellan 500?
Este tipo de assunções não tem qualquer sentido. Construir todas as soluções de acessibilidade que a CTI considera, tem impacto, mais que não seja, a nível económico e de investimento. Os recursos do país são limitados. Além de que, apesar de todo o planeamento, existe sempre o risco destes investimentos serem adiados ou até cancelados. Qualquer análise técnica, não pode descurar este tipo de ponderações e simplesmente “simplificar” como se isso não tivesse implicações. Como é que isto consegue passar numa análise (dita) técnica?
Um outro ponto que quanto a mim merece destaque, está relacionado com o raio de influência de um aeroporto, utilizado em várias análises no relatório. Por definição da Comissão Europeia, a zona de influência de um aeroporto é a fronteira geográfica normalmente fixada em cerca de 100 quilómetros ou cerca de 60 minutos de tempo de viagem de automóvel, autocarro, comboio ou comboio de alta velocidade. No entanto, para a CTI, esta zona de influência é delimitada pela fronteira de “30 minutos a partir de cada localização aeroportuária, calculadas ao longo da rede rodoviária, em condições normais de circulação.” Não existe qualquer explicação para usarem esta definição, e (relembrando que, supostamente, este é um relatório técnico) o que são condições normais de circulação na rede rodoviária? É uma circulação com ou sem trânsito? É uma circulação considerada às 9 da manhã, 3 da tarde ou 5 da manhã?
De acordo com a CTI, a partir da localização proposta para o aeroporto Magellan 500, é possível chegar a Aveiras de Cima, a cerca de 37km pela A1 o que perfaz uma velocidade média de viagem de 74km/h. A partir da localização considerada para o aeroporto de Alcochete, é possível chegar pela rede rodoviária, em condições normais de circulação, ao concelho da Amadora, a cerca de 55km, o que perfaz uma velocidade média de viagem de 110km/h (?!), atravessando o Túnel do Grilo e a CRIL… Está escrito que “a cidade de Lisboa é atingida em pouco menos de 30 minutos”… e, para a CTI, a área de influência de um aeroporto localizado em Alcochete abrange, para além do concelho de Lisboa, ainda os concelhos de Odivelas e Amadora. Ou seja, a partir da localização proposta para o aeroporto em Alcochete, através da rede rodoviária, é possível chegar a Lisboa em pouco menos de 30 minutos, atravessar Lisboa e chegar a Odivelas ou Amadora, ainda dentro de 30 minutos… Fará isto sentido? Porque é que a CTI não usou a definição de zona de influência de um aeroporto conforme estabelecido pela Comissão Europeia?
Do ponto de vista do modelo de decisão, o relatório também está enviesado. Na sua apresentação, a CTI afirmou que teve como objetivo expor as vantagens e desvantagens das opções estratégicas consideradas. No entanto, acaba por realizar uma comparação entre estas, utilizando para isso uma visualização gráfica. Ou seja, aplicou um modelo de decisão para analisar e comparar as diferentes opções. Mas, do ponto de vista académico, o modelo é incorreto, já que para além de não serem claras as unidades de medida, os vários critérios em análise não têm ponderação. Ou seja, não apresentam nível de importância relativa. A esta questão, a CTI respondeu que todos têm a mesma ponderação, porque todos os critérios são considerados críticos. Esta consideração é, por conceito, incorreta. Um critério, pelo facto de ser crítico, não invalida que tenha ponderação. O ser crítico, implica que pode tornar uma opção inviável. Mas a partir do momento em que a opção é viável nesse critério, não definir um nível de importância relativa (ou ponderação), leva à criação de um modelo que não traduz a realidade em análise.
Por exemplo, considerando o impacto ambiental como um critério. Facilmente se compreende que este critério é crítico porque a partir de um certo nível, se o impacto ambiental não for aceitável (ou dentro da legalidade), isto torna a opção inviável. No entanto, considerando que todas as opções têm um impacto ambiental “aceitável” ou “dentro da legalidade”, também é de fácil compreensão que existiram opções com maior, e outras com menor, impacto ambiental. O nível de importância relativa (ou ponderação) entra na forma como este critério se compara aos restantes. Ou seja, por exemplo, de que forma se compara o critério do impacto ambiental (sendo que todas as opções são viáveis) com o critério do investimento público ou o critério da acessibilidade. Existem mais erros, mas, em suma, a CTI optou por não realizar todo este trabalho de desenvolvimento de um modelo que melhor traduzisse a realidade. Isto implica que as conclusões retiradas do relatório podem ser incorretas, ou, pelo menos, viciadas.
Muito mais pontos poderiam ser apontados, como por exemplo, na análise dos ventos está escrita a seguinte frase: “As medições disponibilizadas para os aeroportos de Alcochete e Vendas Novas são insuficientes para a obtenção de resultados confiáveis.” No entanto, no quadro síntese da análise comparativa das Opções Estratégicas no âmbito da Segurança Aeroportuária, no indicador dos ventos, as opções que incluem a solução de Alcochete aparecem como as mais favoráveis. (Isto é cientificamente incoerente.) Ou, na análise financeira, considerou que todas as opções estratégicas estão dentro da área de concessão da ANA. (Isto não é verdade para a localização em Santarém e adultera a análise.) Ou, na análise do abate dos sobreiros, apenas considerou a área estrita de implementação do aeroporto, esquecendo toda a restante área afeta à “cidade aeroportuária” essencial ao funcionamento deste e que tantas vezes é mencionado no relatório preliminar. Ou, mais grave ainda, a conclusão de que não será necessário qualquer investimento público para a construção do novo aeroporto para qualquer das opções consideradas. Publicamente, apenas é conhecida a proposta do Magellan 500. Ora, quem paga o novo aeroporto caso este seja construído em Alcochete?
Este relatório preliminar desenvolvido pela CTI, apresenta demasiadas incoerências e incorreções para ser considerado. Um relatório assinado pela FUNDEC e VTM, organizações ligadas ao Instituto Superior Técnico, assina um relatório onde também aponta várias discrepâncias e inconsistências ao relatório preliminar da CTI. Terminada a consulta pública, existe agora a oportunidade de ser corrigido. No entanto, (infelizmente) não creio que tal venha a acontecer. O que, a verificar-se, revela que esta foi uma oportunidade perdida de realizar um trabalho sério de análise e apoio à decisão no que se refere ao estudo de opções estratégicas de localização para um futuro aeroporto que, acima de tudo, terá de servir Portugal.
Desde início, que era demasiado evidente a preferência da CTI pela opção de Alcochete. Numa notícia saída ainda antes do término do prazo para consulta pública do relatório preliminar, a Coordenadora da CTI afirmou: “Como promotores apresentam posições coerentes com os seus interesses privados, que são legítimos, mas recorrendo a afirmações e interpretações de análises e posições que a CTI não reconhece, e que, por conseguinte, se tornam especulativas”. Ou seja, qualquer análise dos promotores privados que não seja reconhecida pela CTI, é considerada especulativa? Tendo em conta que é um facto que todas as deficiências, imprecisões e incoerências encontradas no relatório preliminar da CTI, são em benefício da opção de Alcochete e/ou em detrimento da opção de Santarém, como se poderá considerar esta análise? Ou serão todos os outros técnicos e cientistas, que estão em desacordo com o trabalho realizado pela CTI, especuladores?
Os interesses dos promotores privados são conhecidos e legítimos. E os interesses da CTI, que realizou uma análise enviesada, quais são?
João Raposo
João Raposo
Atualmente sou Gestor de Projetos na Escola de Aeroespacial da Universidade de Cranfield e professor regente da cadeira de otimização e decisão do curso de Mestrado em Inteligência Artificial Aplicada na mesma instituição.
A minha formação base é em engenharia Mecânica do Instituto Superior Técnico. Em 2010, no âmbito da minha tese de mestrado, desenvolvi um algoritmo e modelo de apoio à decisão para a localização de pontos de carregamento de veículos elétricos (1) . O meu trabalho e algoritmo foram utilizados na decisão para a implementação dos carregadores públicos de veículos elétricos, na cidade de Lisboa.