‘A criança está novamente com febre. o que fazer?’, por Teresa Gil Martins

Quando as crianças ficam doentes, perdem parte da sua alegria e atividade, pelo que é compreensível que os pais fiquem ansiosos. 

Os seres humanos não vivem isolados numa redoma. Partilham a sua existência no planeta com outros seres vivos, entre eles alguns agentes infeciosos, como vírus, bactérias, fungos e parasitas. Estes agentes podem ou não provocar doenças, mais ou menos graves, e as crianças são-lhes particularmente vulneráveis. Quando ocorre uma infeção, o organismo inicia de imediato um processo imunológico para a debelar. Se a tarefa for terminada com sucesso, as defesas específicas criadas para esse efeito ficam guardadas na “memória imunológica” e são recrutadas sempre que o agente infecioso seja reconhecido por perto, evitando que a doença se instale de novo.  

A implementação precoce e generalizada da vacinação tem vindo a reduzir drasticamente a frequência de infeções muito graves, com uma diminuição significativa da mortalidade infantil nos países desenvolvidos. Quanto maior for o número de indivíduos vacinados numa determinada população, menos hipóteses o agente infecioso tem de encontrar um hospedeiro humano onde possa instalar-se, desenvolver doença e, posteriormente, propagar-se a outras pessoas não vacinadas e, portanto, não imunes. 

Portugal pode congratular-se por ser um dos países com uma das mais elevadas taxa de vacinação do mundo. Denota o elevado nível de sensibilização e civismo dos seus cidadãos que, confiando na ciência, se submetem à vacinação gratuita disponível, e ainda lhe acrescentam outras vacinas importantes não gratuitas, apesar do acréscimo de esforço económico que isso constitui para muitas famílias. Este comportamento induz uma proteção individual, enquanto confere algum grau de proteção indireta aos indivíduos com quem convivem, incluindo os não vacinados. Paralelemente à taxa de vacinação crescente, nas últimas décadas tem-se assistido também a uma importante melhoria dos cuidados de saúde prestados em Portugal. A conjugação de ambos explica o motivo por que Portugal é, atualmente, um dos países com uma das mais baixas taxas de mortalidade infantil do mundo – ou seja, um dos países onde morrem menos crianças. 

Para além das infeções graves, existem cerca de uma centena de vírus disponíveis para provocar doenças benignas. Estas raramente têm complicações associadas e na maioria dos casos não têm tratamento específico, porque resolvem espontaneamente em 2 a 3 dias. As infeções virais ocorrem mais frequentemente nas crianças, e conferem proteção futura para essa doença, razão pela qual os adultos são menos suscetíveis.  Para que seja atingida uma estrutura imunológica robusta, a criança deve ter contacto com a maioria desses vírus. Para além disso, estas infeções benignas desempenham um papel imprescindível na regulação do funcionamento do nosso sistema imunológico: se este não for exercitado para as funções para as quais foi concebido, tem maior risco de ficar “desregulado” e, assim, contribuir para o desenvolvimento de outras doenças, como as alérgicas (asma, rinite, eczema) e as autoimunes (colite ulcerosa, doença de Crohn), entre outras.

Os antibióticos não tratam as infeções provocadas por vírus, mas eles são indispensáveis para tratar as que são provocadas por bactérias. Quando são usados de forma indiscriminada e inadequada, as bactérias tornam-se resistentes a estas armas terapêuticas, o que faz com que haja necessidade de recorrer a antibióticos progressivamente mais fortes para tratar infeções bacterianas ligeiras (como amigdalites ou otites). Com recurso a esta escalada terapêutica corremos o risco de, num curto espaço de tempo, deixarmos de dispor de antibióticos capazes de tratar as infeções bacterianas mais graves (meningites, por exemplo).

Atualmente, nos países desenvolvidos, as doenças agudas mais frequentes em crianças previamente saudáveis são as infeções benignas de etiologia viral, que afetam sobretudo o aparelho respiratório e são mais comuns no inverno (porque nesse período permanecemos mais tempo em ambientes fechados e pouco ventilados, fatores facilitadores para a propagação e contágio dos vírus). A febre constitui a manifestação externa de que o sistema imunitário está a trabalhar para tratar a infeção, enquanto a tosse é o mecanismo que permite expelir as secreções que se acumulam no aparelho respiratório. Dores no corpo, dores de cabeça, obstrução nasal e diarreia podem ser sintomas benignos associados. O tratamento destas situações consiste em manter repouso no domicílio, hidratar bem a criança, destapar o nariz para que respire melhor e, se a criança está muito incomodada, tratar a febre com paracetamol, em dose adequada ao peso. Constituem sinais de alarme, com necessidade de observação médica e eventual motivo para recorrer ao serviço de urgência hospitalar: palidez cutânea e unhas e boca arroxeadas em subida térmica, febre alta e difícil de ceder ou com uma duração superior a três dias. Também preocupam todas as crianças que depois de baixar a febre continuam muito prostradas, com lesões/manchas na pele, respiração ofegante/cansada ou tosse persistente, falta de ar, vómitos incoercíveis, se tiverem uma convulsão ou se persistirem várias horas sem urinar. Devem ainda ser observadas todas as crianças com menos de 4 meses de idade que se apresentem com febre, vómitos, gemido, recusa alimentar ou falta de ar. Situações menos graves devem ser observadas nos Cuidados Primários de Saúde (Centros de Saúde). 

O uso de máscaras durante a pandemia diminuiu a frequência das infeções virais benignas da infância nos dois anos transatos. O regresso “explosivo” dessas situações poderá explicar uma parte do caos e dos longos períodos de espera que se tem vivido este inverno nas urgências pediátricas. Estas instituições deveriam estar reservadas ao tratamento de crianças gravemente doentes ou com risco de vida. Para que não ocorram atrasos no seu tratamento e para que todas as outras sejam orientadas com segurança e sem qualquer risco, recomenda-se uma triagem prévia com o médico assistente ou através da linha Saúde 24 (número telefone- 800 24 24 24) que se encontra permanentemente disponível e destinada a esclarecer dúvidas e a orientar os pais na melhor forma de prestar cuidados. Crianças referenciadas pela Saúde 24 tornam-se prioritárias no atendimento hospitalar. 

Depois de terem sido submetidas a inevitáveis e inúmeros “desagradáveis testes Covid”, as nossas crianças suplicam-nos que as poupemos a sofrimentos desnecessários, evitando observações médicas supérfluas e injustificadas, mas também nos imploram que as tratemos com segurança e sem atrasos, quando desses cuidados depende o seu bem-estar e a sua sobrevivência. Tal dependerá de uma gestão adequada dos recursos disponíveis e do uso sensato que deles fazemos. Prevenindo infeções graves e mobilizando os recursos de saúde para tratar adequadamente todas as doenças, quem beneficia e agradece são as nossas crianças.

Teresa Gil Martins

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