CICLO Gonçalo Carvalho, antes mesmo de ter sido eliminado da Taça Ribatejo, falou a O ALMEIRINENSE e anunciou o fim de uma ligação de cinco anos ao Fazendense. Os bons momentos são mais que os maus e a relação com António Botas Moreira difícil, mas muito melhor hoje que no início. O técnico agora segue para outros desafios.
Comecemos pela sua saída. Por que razão vai mudar de ares?
São cinco anos na Associação Desportiva Fazendense! Um ciclo extremamente rico, com diferentes experiências, com pessoas fantásticas, que naturalmente termina de forma simples e tranquila.
O porquê da escolha Rio Maior?
O Rio Maior SC surge pelo projeto delineado, pela abordagem efetuada, pela vontade das pessoas envolvidas em que fizesse parte do grupo de trabalho que irá iniciar uma nova página no clube!
Que balanço faz?
Faço um balanço extraordinariamente positivo!
Encontrámos o clube numa fase complicada, onde não havia estabilidade nem continuidade dos diferentes recursos. Creio que o nosso grande contributo foi nesse sentido: fazer bem com menos, demonstrar que é possível ter os valores certos, a conduta adequada e vencer jogos, a jogar bem. Temos a plena noção de que não vencemos alguns jogos por transportarmos em nós esses valores éticos, mas olhamos para trás e temos a forte convicção de que fizemos o correto! Não trocamos uma amizade por uma vitória, nem abdicamos do respeito por três pontos!
E a estabilidade e continuidade de que falo é consequência desta forma de estar!
Quais os melhores momentos?
São tantos os melhores momentos, aqueles que são vividos e ficam dentro do grupo de trabalho, que acaba por ser difícil enumerá-los. Gostaria muito de referir aqui títulos, mas a verdade é que nunca foi uma aposta do clube, pois os nossos recursos nunca foram comparáveis aos de quem conquistou esses títulos. Mas respondendo diretamente à pergunta, os melhores momentos foram os muitos jogos em que jogámos futebol a sério, bem jogado, com o reconhecimento de quem via, de quem defrontávamos e com a satisfação e prazer dos nossos jogadores.
A título pessoal, guardo, como melhor, as relações estabelecidas com quem trabalhei, sem exceções!
E os piores?
Esses são mais fáceis de enumerar. Foram poucos, mas marcantes! Os jogos em que nos sentimos desrespeitados,
em que percebemos que não vencíamos por não entrarmos no “vale tudo”, tão frequente e rentável.
Também considero a reta final da época 2018/2019 um momento menos bom, onde senti a equipa demasiado acomodada no meio da tabela, e não conseguimos desenvolver estratégias para alterar a situação.
Num ano “normal” também referiria as três derrotas seguidas que sofremos no passado mês de maio, mas dadas todas as contingências e envolvência, não seria justo ao fazê-lo.
Agora que o clube está ainda mais bem dotado de infraestruturas porque não continua a dar sequência ao projeto?
Sim, é um facto. A A.D Fazendense tem excelentes infraestruturas, atualmente, e oferece boas condições de trabalho. Mas, como referi anteriormente, sentimos que terminamos um ciclo, de forma tranquila, e satisfeitos por deixar o clube com a capacidade de lutar por algo que, nas épocas anteriores, não era possível.
Saímos do clube melhor, a todos os níveis, do que entrámos. Essa é uma grande satisfação e o mote para desejar a maior sorte a quem nos sucederá!
Foi fácil lidar com António Botas Moreira?
Muito fácil. O presidente é de um coração enorme! Tem as suas ideias, em muitos aspetos diferentes das minhas,
mas o diálogo e o respeito entre nós resolveu sempre tudo! E creio que a palavra de ordem é mesmo essa: respeito!
O presidente respeitou-me sempre, eu respeitei sempre o presidente, e acabámos por desenvolver uma relação de amizade, forte e saudável! Ele tem aqui um amigo para a vida, dentro ou fora do futebol, e eu sei que da parte do presidente é igual! E isto é, sem sombra de dúvida, o que de melhor fica.
É um dirigente que assume ter “o coração junto da boca”. Também viveu episódios mais difíceis com ele?
Sim, é verdade! Tem o coração junto da boca e, por vezes, diz o que não se gosta de ouvir.
Há alguns episódios interessantes, até engraçados, que guardo da melhor forma. Recordo-me de ele estar a criticar um jogador que não marcava golos, e eu a pedir para ele apoiar (os dois em tons mais elevados), e nós vencermos 2-1 com dois golos desse jogador. Este é um dos exemplos desse “coração junto da boca”.
Mas, no final, é a primeira pessoa a falar com os jogadores, a apoiar ou reconfortar, a ir ao balneário dar “aquela palavrinha” que é precisa! Guardo também um momento em que estava todo o grupo de trabalho no balneário, a falar de um assunto sério, e o presidente, a meio da conversa, abre a camisa (como se fosse o superman) e exibe o Luisão (capitão do Benfica, na altura) na sua t-shirt! Aquele que era um momento sério ficou de uma alegria enorme. São momentos que guardo com estima! O presidente foi muito mais presente na derrota que na vitória, e sempre a puxar para cima! É enorme!
Nesta temporada, qual o balanço que faz?
Nesta época desportiva, com o novo campo e mais espaço para treinar, as possibilidades seriam melhores. Contudo, pouco decorreu como previsto, o campeonato ficou a meio, a nossa consistência não foi a que desejávamos e oscilámos bastante entre o muito bom e o muito mau! Facilmente indicaria uma série de fatores que contribuíram para que não fôssemos tão fortes como pensámos que podíamos ser.
Contudo, nunca o fizemos; há que parabenizar quem fez melhor, perceber o que foi menos bom e aprender! Aprender sempre! Ainda assim, dentro do menos bom no que ao campeonato diz respeito, acabamos na primeira metade da tabela, num ano com resultados estranhíssimos, sem coerência!
O Fazendense quer sempre mais, mas alcançámos uma classificação que não envergonha ninguém. Os diferentes lugares distam em 2, 3, 4 ou 5 pontos, onde se jogaram 15 jogos, mas num espaço temporal enorme, com diferentes interrupções, com uma pausa de 4 meses, com os plantéis que começaram diferentes dos que terminaram…
Foram muitas as incidências, para todos!
O Coruchense foi claramente melhor, merece a subida aos campeonatos nacionais, sentem-se campeões com todo o mérito! Mas, em balanço, senti que foi uma época demasiado desgastante, com muitas situações para resolver, com incertezas diárias, sem um trabalho contínuo! Mais uma vez, em tempos tão difíceis, sobressai a relação interpessoal que o nosso grupo tem!
Em que medida a Covid-19 justifica o oitavo lugar?
Nós não fomos exceção, nem exclusivos, relativamente a dificuldades ou constrangimentos. Todos os clubes viveram isso! Agora, este oitavo lugar vale o que vale. Na retoma, em maio, quando já todos sabiam que se iriam jogar 5 jogos e o Coruchense subiria ao campeonato de Portugal, o Fazendense estava a 3 pontos do 2º lugar.
Era o lugar que queríamos. Empatámos em Amiais, em um daqueles jogos que facilmente nos marca, onde colocamos tudo em causa e repensamos se vale a pena “andar nesta vida do futebol”, e uns dias depois perdemos 1-2 com o Abrantes, num jogo de futebol extraordinário, com as duas equipas a jogarem num ritmo elevadíssimo, com bons golos, com muitas oportunidades de parte a parte.
Podíamos ter vencido, perdemos, e esta é a beleza deste jogo, quando se trata só de futebol! Nesse dia, percebemos que não iríamos ser segundos classificados. A equipa “desligou”, no treino e na competição, e “apontou” para a Taça do Ribatejo. Mais uma vez, não era o que queríamos, mas acabámos por ter mais duas derrotas, que nos fizeram descer na classificação.
O último jogo do campeonato, na nossa casa, serviu para dar uma resposta a essa má série de resultados. Demos essa resposta! O oitavo lugar é da responsabilidade do Gonçalo Carvalho e não da Covid-19.
Estar na final da taça é o objetivo de carreira?
Estar na final da taça é um objetivo do grupo de trabalho e do clube (que tem tradição na competição e o maior número de conquistas). Nas 5 épocas ao leme da equipa, acabámos por ser eliminados em Amiais (na época em que o Amiense não perdeu em casa), em Mação (num 23 de dezembro, extremamente desfalcados e em casa do justíssimo campeão distrital) e em Tomar (a sofrer o empate aos 90 minutos e a perder nas grandes penalidades).
No ano passado, que não terminou, estávamos nas meias-finais! Esta época estamos nos ¼ de final e com vontade de seguir a caminhada. Veremos o que o futuro nos reserva! Vamos fazer por ser felizes, certamente!
Quer despedir-se com essa conquista?
Quero! Quero muito! Eu e todo o grupo de trabalho queremos essa conquista, por sentirmos que temos feito, ao longo do tempo, por merecer algo mais!
Achou bem o campeonato ter sido retomado neste modelo?
Provavelmente era o modelo possível, e quem tem que decidir fica sempre numa posição ingrata, à mercê das diferentes opiniões, legítimas, mas por vezes, infundadas. Há questões que poderiam ter sido conduzidas e geridas de forma diferente. Como é hábito, há sempre quem cumpra, quem tenha o bom senso que a situação exige, e quem vá para o tão recorrente “vale tudo”, com repercussões. A retoma foi benéfica, os jogadores precisavam
da prática desportiva, do grupo, da adrenalina do jogo! Naquilo que foi a idoneidade ou a coerência desportiva, houve muitos “lapsos”.
Teve medo de voltar por causa da Covid?
Não tive medo, porque naturalmente sou uma pessoa positiva, cuidadosa e cumpridora.
Fui pai pela 2ª vez em dezembro de 2020, em plena pandemia, e no início da época desportiva disse ao grupo de trabalho que iria estar sempre de máscara, que não estaria em convívios ou algo que pudesse colocar em risco a gravidez da minha esposa e, posteriormente, a bebé!
Não foi fácil, acabou por ser muito diferente do dia-a-dia sem a pandemia, mas todos perceberam, e os diferentes períodos da época foram fluindo.
E sentiu esse receio dos jogadores?
Não. Também não senti isso!
Claro que há sempre uns que são mais cuidadosos que outros, ou que têm contextos familiares e pessoais que forçosamente os obrigava a estar mais atentos (como aconteceu comigo, por exemplo), mas num grupo com qualidades humanas bem vincadas, como é o nosso, acabou por ser o mais natural possível, dentro da “pouca normalidade” a que a pandemia obrigou.
Do que sentiu mais falta enquanto o futebol esteve parado?
Do treino, do campo, da adrenalina do jogo e, acima de tudo, das relações humanas, de sentir o grupo.
O Gonçalo acha que se sentirá um grande impacto, principalmente nos jovens, deste ano e pouco parados?
Não tenho dúvidas. Vai-se sentir e irá demorar algum tempo até se regularizar.
As relações estão diferentes, as práticas em contexto de treino e de jogo estão diferentes, os hábitos são outros, forçosamente. Muitas crianças abandonaram a prática desportiva, as questões motivacionais, mentais, sociais, relacionais, foram alteradas… Será preciso um grande apoio e um sentido de serviço social e comunitário
por parte de quem trabalha com jovens, para que se recupere desta paragem, que foi mais que uma mera paragem! Aproveito a oportunidade para reforçar aquilo que todos os meritórios treinadores que trabalham com jovens sabem, mas que nunca foi tão necessário como agora: que se jogue para ganhar, mas que não seja o primeiro objetivo! Atualmente, o desporto pode ser o melhor instrumento para recuperar o que se perdeu, para potenciar a saúde, para fazer das novas gerações pessoas melhores, competitivas mas com valores!
Que as ofensas aos árbitros ou aos adversários não sejam prática comum, que as “espertices” para ganhar jogos não sejam hábito, que se jogue, que se corra, que se ensine e que se aprenda! Todos ganham com isso!
Que mensagem/palavra deixa aos Charnecos?
Foi um prazer liderar a equipa principal deste grande clube! Apoiem, envolvam-se, confiem no clube para contribuir na formação dos charnecos. Crianças e jovens, vejam na equipa principal o objetivo para a caminhada!
Dei o que consegui, recebi muito! Obrigado, Fazendense! Por tudo!