“Levo daqui muitos ensinamentos, todos os dias aprendo com todos”

Anabela Catalão aceitou uma proposta de trabalho para formação pedagógica de professores timorenses em língua portuguesa em Timor-Leste. Ao nosso jornal conta a experiência e à distância deseja a todos um feliz natal, um bom ano de 2021, que a vacina anti-covid chegue rapidamente todos.

Como e quando surgiu a ideia de ir para Timor / O que a levou para Timor?
Eu acho que foi Timor que veio ao meu
encontro numa manhã de agosto de 2020. Lembro-me perfeitamente, estava
na pausa para café quando o meu telemóvel tocou, atendi e ouvi, com alguma dificuldade, uma senhora a tentar certificar-se da minha identidade, habilitações e experiência de trabalho.
Procurei um lugar mais calmo e isolado e percebi tratar-se de uma proposta
de trabalho (formação pedagógica de professores timorenses em língua
portuguesa) com a chancela de Camões – Instituto da Cooperação e da Língua.
Sem aprofundamento, rapidamente deduzi que aquela informação só podia ter vindo da sequência do meu pedido de certificação do meu tempo de serviço, junto da Direção Geral de Administração Escolar (DGAE), onde trabalha uma colega da faculdade, penso eu! Resultado: tive um mês para formalizar e submeter uma candidatura; preparar a CLASS 20 de forma a que esta não se ressentisse com a minha retirada, ainda que temporária;
despedir-me da direção da MovAlmeirim; da CPCJ, onde tinha processos em curso; da família e amigos; fazer uma mala e ir ao encontro do desconhecido que chamava por mim.

Quando vai voltar a Almeirim?
Estou a contar voltar em agosto de 2021, de férias e regressar para dar continuidade ao ano letivo que termina em dezembro
do mesmo ano.

Como está a correr a experiência?
A experiência está a ser parcialmente gratificante. Parcialmente porque o
projeto para o qual fui contratada ainda se encontra em fase embrionária (fase de planeamento). Contamos arrancar com o curso de formação de professores em fevereiro de 2021.

Não se arrepende?
Não. Não me arrependo nem desisto facilmente. Para mim, as opções são tomadas de acordo com as circunstâncias, caso surjam adversidades ou constrangimentos, há que mitigá-los ou solucioná-los, levando-os até ao fim. Foi com base neste princípio que sempre pautei a minha vida e eduquei os meus filhos, não seria agora que iria fazer o contrário, a não ser por questões fortes, como a saúde ou outra incontornável.

Quais os maiores ensinamentos desta experiência?
Levo daqui muitos ensinamentos, todos os dias aprendo com todos, especialmente com os timorenses. Há histórias e lendas incríveis. Impressiona-me o modus operandi de uma sociedade ainda muito pouco desenvolvida. Com pouco ou nada é possível FAZER E SER FELIZ.
Com eles, todos os dias, reforço os valores de humildade, simplicidade e gratidão. Impressiona-me ver este povo dar o pouco que tem e, quando não tem, compra, endivida-se para dar cumprimento à sua honra. A estes valores, acrescem o respeito e a educação que constituem marcas culturais de um país que apesar de ter sofrido duras invasões, nunca perdeu a sua identidade, aliás sensibiliza-me sentir a alegria e o orgulho emergirem do sofrimento de cada um. Raras são as famílias que não choram a morte de entes queridos que não escaparam às mãos e corações bárbaros, principalmente, dos indonésios.
Porém, o desluto, celebração da morte, ajuda a sarar as feridas e a reerguer a família e a comunidade.

Que episódios mais a marcaram pela positiva?
Ainda sou recém-chegada, faz hoje, precisamente, 3 meses que aqui cheguei.
No entanto, posso partilhar um pouco sobre a celebração da morte – o
desluto. Não sendo um episódio positivo, marca-me pela abordagem positiva que se faz a um acontecimento trágico e fatídico. O desluto consiste num ritual, quanto a mim, muito interessante do ponto de vista antropológico e sociológico.
Trata-se de uma forma inteligente de abafar o sentimento da perda de um
familiar. Aconteceu a um colega, dois meses antes da minha chegada, que sofreu um enfarte, tendo sido feito o desluto na casa onde moro, por ser maior. Nestas circunstâncias, a comunidade junta-se à família e aos amigos para prestarem homenagem ao falecido. Este ritual chega a durar dias ou semanas, uma vez que a festa só começa quando todos estiverem presentes, alguns vêm de longe. Primeiro, organiza-se a festa das flores e velas, uma cerimónia formal, em que todos os presentes são chamados a participar com rezas e discursos, seguido de um jantar. Localmente, matam-se búfalos e galinhas, guardados para este e outras ocasiões.
Um ano depois, o luto é definitivamente retirado com mais uma festa, na qual o falecido é recordado com discursos, vinho de palmeira, flores e velas na campa« e comida e, por fim, o desejoso bailarico que chega a durar a noite inteira. Não foi o caso, uma vez que o corpo do colega foi trasladado para Portugal.
Outro episódio que me marcou, poucos dias após a minha saída da quarentena, foi o elevado grau de satisfação e admiração por parte dos timorenses, principalmente, de adolescentes e crianças, relativamente à minha presença, bem como a de uma colega, num casamento local. Fomos convidadas no dia anterior à cerimónia, nem nos apercebemos do que se tratava, porque apenas nos falaram de uma celebração na Fundação de Santa Madalena de Canossa. Aqui, o professor beneficia de um estatuto de grande importância. Ser professor, trata-se de alguém que veio de longe, deixou família para vir ajudar e ensinar os timorenses. Por isso, eles agradecem a presença do professor nos mais variados acontecimentos, sendo uma honra, para eles, poderem receber e apresentar os professores como seus amigos. Neste dia, senti-me uma celebridade para a
pequenada. Grande parte das crianças passaram o dia agarradas a nós e a acariciarem-nos os braços e o cabelo. Percebemos que a admiração estava na cor da pele branca e do cabelo louro e pelo facto de poderem privar com professoras fora do contexto educativo. Ainda neste contexto, impressionou-me a organização e a realização das tarefas, inerentes à festa, através da participação de grupos de homens, mulheres e jovens, que se mobilizam de forma disciplinada, rápida e eficiente para o bem
comum.

E pela negativa?
Pela negativa, infelizmente, marcam-me muitas coisas, como ver todos os
dias casos de estrema pobreza, de desigualdade social, a falta de assistência
médica e a falta de condições básicas como água canalizada e potável. Diariamente, vejo crianças a transportar jerricãs ou garrafões de água. Nos dias de chuva, lavam-se e brincam descalças nas águas poluídas, pela falta de drenagem de esgotos e de águas pluviais.
Nestes dias, as ruas transformam-se em rios, cujo leito varia de acordo com
a intensidade das chuvas, chega a ter corrente e a a cobrir parte do corpo dos pequenos. Mesmo assim, transborda a felicidade de todos pelos efeitos que este fenómeno natural exerce sobre a terra que os alimenta e que serve de cenário de aprendizagens.

De que mais se tem privado?
Imaginando as condições mais adversas, cheguei de coração aberto. Porém,
sinto falta do conforto da casa, da cama macia, dos lençóis a cheirar a amaciador, da televisão, do cinema, do conforto nas casas de banho. Quanto aos eletrodomésticos, já nem dou por falta deles, mesmo com poucos, acabo por me sentir privilegiada comparativamente com as pessoas que vivem ao meu lado. Mas os aspetos que mais me incomodam são: a falta de higiene dos espaços públicos e privados, e as condições de segurança.
Tenho-me privado de andar tranquilamente e de desfrutar do ambiente que
me envolve porque as ruas e os passeios são lixeiras a céu aberto, os cheiros são nauseabundos e os buracos são caçadores de distraídos, como eu (ahhh).

Deixou a milhares de quilómetros os filhos e o marido. Como tem atenuado as saudades?
Sim, distamo-nos cerca de 14 000km, as saudades são muitas, mas graças ao
WhatsApp, duas vezes por dia, de manhã e à noite e ao fim de semana, todos juntos, as saudades parecem atenuar-se. Para não pensar muito, tento ainda ocupar o meu tempo livre ao máximo.
Estou a frequentar um curso de especialização na Universidade de Aveiro –
Introdução à Cooperação Internacional para o Desenvolvimento. Para mim, não fazia sentido ser agente de cooperação e desconhecer os estatutos que me regem, por isso faço os trabalhos, frequento as aulas síncronas e procuro encontrar respostas para muitas das minhas dúvidas.
Além desta especialização, estou a frequentar um curso de ilustração
científica, integrado no projeto – Rota Magalhanica, na Fundação Oriente,
duas vezes por semana. Sempre que a embaixada ou outra entidade cultural promove atividades, como exposições, feiras do livro, workshops, festivais de cinema, etc. eu tento marcar presença para me inteirar da cultura e da história nacionais ou internacionais.

Temos a ideia de um país que não é muito avançado em termos tecnológicos. A internet é boa?
Timor é um dos países mais pobres do mundo, 41% da população vive abaixo do limiar de pobreza. Logo, a tecnologia é só para alguns que vivem nos centros urbanos. Se sairmos destes centros, é claro que esse bem não faz parte da rotina das pessoas. Neste aspeto, vê-se a grande desigualdade que me referia. Quanto à internet, depende dos lugares. Aqui na capital, a internet é razoável, apesar de lenta. Se formos para o interior, já não conseguimos comunicar com ninguém. Embora as expetativas
sejam grandes quanto ao futuro, não deixa de ser apenas uma gota comparativamente ao domínio tecnológico do mundo desenvolvido.

Como e onde vai passar o natal este ano?
Este ano vou passar o natal cá, em Dili, só irei no verão, se a Covid deixar. Como sou agente de cooperação e estou numa missão, tenho a possibilidade de viajar em voos da WFP, Programa de Ajuda Humanitária Mundial (PAM), destinando-se essencialmente ao transporte de bens essenciais como alimentos e medicamentos, reservando poucos lugares a passageiros. Assim, seguem os casos urgentes, os que estão aqui há mais tempo e depois os restantes. Como eu sou recém-chegada, felizmente, não tenho urgência, decidi não ocupar lugar e ficar.
Desta forma, vou passar cá o natal com 4 colegas, provavelmente na casa
onde me encontro, com um menu tipicamente português: o bacalhau, o polvo e o frango (ingrediente principal timorense). As doses irão ser mais reduzidas do que aí, primeiro, devido ao preço, os alimentos são muito caros aqui na cidade por serem importados e, depois, para se evitarem desperdícios.

Já tinha decidido ir para Timor antes mesmo da Covid-19?
Não, jamais! Nunca na minha vida pensei emigrar, nem Timor, em tempo algum, esteve no meu mapa de destino. Surgiu mesmo da forma como já referi.
Acho que ter vindo parar ao sítio onde me encontro, no tempo que nos encontramos, foi uma conjugação de fatores casuais que não podia ter sido mais propícia. Aliás, as privações e limitações acabam por ser impostas naturalmente pela COVID-19, o que ajuda a desculpabilizar as ausências.